quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O PAU MULATO - O CONTO - DO ESCRITOR BENEDICTO MONTEIRO


O PAU MULATO






Será que você nunca teve vontade de sair deste lugar pra viajar pelo mundo?


- Já, seu major, foi numa passação de gado do coronel Quintino, quando ouvi um caboco dizer: É, o negócio é correr terra. Me aproximei dos três vaqueiros que conversavam, e fiquei escutando a lorota do caboco misturada com o pó-to-pó-to das patas dos cavalos na água coberta de capim.



- É, o negócio é correr terra. Eu não quero ficar numa fazenda nem um mês. - disse um deles - Que adianta ficar encurralado numa dessas varjas, que até pra chegar na casa dum vivente, é preciso andar léguas e léguas? E bote mato, e bote água, e bote rio. Quando o gado vai pra terra-firme, o cristão fica nesse oco de mundo: Só ouve o estouro da onça e o grito triste do acauã. O negócio é correr terra, minha gente, e furar mundos e mundos...



- É, e as cabocas ? - disse o outro.



- É, e as cabocas ? - falou Zé do Laço - se a gente ingata num rabo de saia, adeus vaidade, vem a filharada, e pronto: Tudo cercado e amarrado. Rabo de saia, quando pega a gente, é pior, muito pior que espinho-espera-primeiro. Não larga, e quando larga, é tudo arranhado e rasgado: Mulambo de gente.



Aí, desgarrou-se uma rês. Zé do Laço levantou a corda e gritou como um aboio.



- O negócio é correr terra, minha gente.



Logo em seguida saiu outra rês da boiada e eu meti o cavalo em cima. Mas fiquei com aquele grito cantando no ouvido: O negócio é correr terra, minha gente.



Moço como eu era, seu major, disposto pra qualquer trabalho, não podia nunca ficar atado naquele barro visguento nem boiando naquelas águas paradas nos campos do Candiru. Meu pai mesmo já tinha dito: "olha Miguel, se tu não vai querê te aquieta, acho melhó mesmo tu sentá logo praça. Vira logo sordado pra servi à Pátria, no mais". Minha mãe protestava logo e arrumava outro jeito: "acho melhó mesmo, é ele casá com Joana que é louca por ele". Meu pai resmungava: "Quar nada, Joca, Miguel é lá de sentá cabeça pra arranjar mulher. Ele é muito novo, cuida só de andanças por ai". Minha mãe insistia: "Por isso mesmo, Terto, ele arranja mulher, casa, e pronto: vem logo filho e acaba a vadiação de vez". Mas mesmo assim, meu pai se orgulha: "Rapaz bem parecido, vendendo saúde! Quando está pra graça, trabalha que nem tinhoso! Mas o diacho é que ele não pára em lugar nenhum".



Eu era assim mesmo, seu major, não parava: Como hoje, ia numa passação; Amanhã, numa apartação de gado; Depois, numa castração no rodeio. Era convidado pra cobrir barracão, pra puchirum de matança de jacaré, batição de pirarucu, tarrafíação do piracema e até pra pescaria de tartaruga e lavagem de juta. De tudo eu gostava de fazer e aprender : Derruba de mato, batição de juta, caçada de porco brabo na mata e de capivara no igapó.



Mas quando não havia ajuntamento de gente nesses trabalhos de parceria, punha a espingarda na costa e metia a cara no mato pra caçar. Andava nas matas horas e horas. Conhecia pau por pau. Não havia igapó mais intrincado, chavascal mais escondido, restinga mais virgem, onde eu não fosse buscar a minha capivara ou a embiara que os matos sempre guardavam pra mim. Falava com as árvores como velhas conhecidas, depois explicava pró pai: Foi pai, naquele apuizeiro grande lá da restinga do Catauari - o apuizeiro, aquele grande - na entrada do igapó da lagoinha... Não tem aquele chavascal medonho no brejo da mulata? Pois é. Depois de passar aquele taxizeiro torto, anda mais um bocado, e passa no meio do manhuranal: Aí, anda mais um bocado, e atravessa aquela baixa grande do lado do campo. Bem na entrada do igapó, tem um pau mulato. Pois é Iá! - Meu pai que era morador antigo e mateiro afamado, ficava me olhando, me olhando, e muitas vezes não sabia o que eu estava dizendo. Mas meu padrinho Possidônio, esse ficava alegre, e achava muito bom, que eu conhecesse o mato ainda melhor.



Um dia, chegando à tardinha duma caçada, notaram que eu não trazia nada. Meu pai logo perguntou:



- Como é, foi panema? Perdeu a embiara ou a caça te cinzou?



- Hoje eu não quis caçar, estava só olhando o mato.



- O mato? 



- É, o mato. Estava vendo se escolhia uma árvore, um pau bonito que se pareça comigo, pra deixar de recordação.



- Ei, Joca, virou doido o rapaz.



- Ara deixa o pobre, Terto, tu não sabes que ele é assim ...



Eu era assim mesmo, seu major. Não, não era doidícia, não. Eu andava mesmo procurando um pau, que pudesse servir de marco na minha vida. E que ficasse pra pai, mãe, padrinho e namorada, como fiel recordação. Até pensei, em plantar ali mesmo, uma árvore no terreiro. Podia bem ir à cidade, e de lá trazer um filho de mangueira. Não, mangueira, não! Mangueira podia morrer no inverno quando as águas subissem. Minha mãe podia até ficar preocupada, pensando no azar. Ademais, mangueira é fêmea, árvore fêmea. Não podia me representar todo inteiro pela ausência. Planta fina da cidade não servia. Não servia. Tinha que ser mesmo árvore do mato. Um dia pensei que tinha encontrado: O taperebá. Porrete! Taperebazeiro era ótimo. Dava certinho pra plantar no terreiro, bem no canto da casa, de frente pra o rio. E tinha muitas vantagens, seu major. Não precisava de semente, nem de muda, nem de filho: Grelava de estaca. Então, era só encontrar um pau Unheiro na mata, derrubar, cortar todos os galhos, e tirar uma estaca. Era só mesmo tirar uma estaca bem lavrada, do meu jeito e do meu tamanho. Aí eu pensava: Com alguns meses a bicha está grelando. Mas seria mesmo uma estaca bem lavrada? Tornei a pensar... Ou um moirão? Um moirão grosso, retorcido, já meio descascado pelo vento e pelo sol? Não, moirão, não! Só se eu fosse gordo, maduro e casado. Moirão, não. Devia ser uma estaca bem lavrada. Estaca sim, ficava bem sentada e comparada com um rapaz. Mas o diacho, seu major, é que o âmago do taperebá era leitoso e vermelho: Cor de sangue. Aquela estaca assim vermelha, no terreiro, cravada no canto da casa, não podia inspirar boa recordação. - O senhor não acha, seu major? - O senhor não acha? Minha mãe podia notar o leite avermelhado saindo da estaca sangrando. Não, por Deus, que não era boa recordação! Depois, tinha outra inconveniência: Por algum tempo, a estaca enterrada no barro, tinha por força que ficar quase morta. Sem galhos, sem folhas, sem flores, aí que ela parecia um pau qualquer. Os vaqueiros quando passassem, os meus irmãos quando chegassem, iam por força querer amarrar nela os seus cavalos. Iam até impinimar pra amarrar a corda bem pelo lugar do meu peito. Iam entaniçar meus braços, e até que eles, só de malvadeza, podiam arrochar a corda, bem em cima do meu coração. Aí minha mãe tinha, que no íntimo, se sentir revoltada. Na certa ela ia dizer: "não quero que amarrem cavalo nesta estaca, seus tinhosos!" - Ia ser com certeza, pé-de-briga. Depois os meus irmãos iam achar graça. Iam na certa mangar da saudade da velha: "como é mamãe, será que Miguel já grelou?" - Ou então eram muito capaz de dizer: "não deixe cachorro mijar no pé dele". Podiam até recomendar: "olhe, ponha bosta de gado no pé de Miguel, que ele grela" - Não, seu major, não podia ser taperebá. Além dessas inconveniências, o taperebá tinha aquele leite vermelho, que ficava lacrimejando de tempos em tempos.



O senhor pensa que desanimei, seu major? Não. Voltei novamente pra mata, e procurei outra árvore. Uma nova árvore. No terreiro da casa, é que não ficava bem. Ia sair pelo mundo, enfrentar a vida, lutar contra a sorte, sem contar com a proteção nem da mãe nem de pai. Mal comparado, eu podia me meter até num igapó ou num chavascal, o que o senhor acha, seu major?



Passei em revista as árvores pra uma nova escolha. Tinha excluído o Catauari, porque era esgalhado, e se confundia facilmente com outras árvores de seu porte. O taxizeiro, seu major, tomara o senhor veja: É um pau bonito! Esguio e forte. De rara folhagem nos altos galhos. Suas flores quando caem, giram como hélices, milhares de hélices, ao sabor do vento. São as primeiras flores que anunciam a vazante do rio. Mas depois de lembrei de uma triste inconveniência: É um pau muito cheio de formiga. A imbaúba, nem contava. Apesar das folhas, grandes folhas, brancas prateadas dum lado e verde acinzentado do outro. Que brilham, isso eu sei que brilham: Tanto na luz da lua como na luz do sol. O senhor vai ver, seu major, quando o vento bate. Mas imbaúba é o tipo do pau bonito mas ordinário: Galhos finos de sacai, e tronco oco e cheio de nó que nem bambu. Taperebá, eu já tinha decidido: Não servia por causa da casca que lagrimava sangrando. Eras, de pau! Ai, me lembrei do mari-sarro. Taí, o mari-sarro, pensei muitas vezes: Quando floria era a árvore mais bonita! Só que depois, perdia as folhas, caiam as flores e ficavam pendurados só os frutos. Eram frutos negros e retorcidos e ficavam apinhados aos galhos que nem bandos de urubus. Era um pau paresque até que por demais agourento.



Na terra-firme, eu conhecia muitas árvores que bem que podiam ficar como lembrança, só que não grelam naquelas proximidades, onde precisava ficar a minha presença. Eu precisava de uma presença viva, que durasse todo o tempo da minha ausência. A castanheira da várzea, por exemplo, chamada de sapucaia, não era como o castanheiro do Pará. A sapucaia, além de ser baixa, esgalhada e fêmea, ficava sempre com os ouriços pendurados até apodrecer. E quando caíam as pivides, apareciam os buracos, que eram paresque enormes bocas sem dentes gritando pras distâncias dos rios. Já o castanheiro-macho, castanheiro do Pará, esse sim, era o gigante da mata. Tem a copa, acima da mais alta árvore da floresta. Desafia ventos e tempestades. E o que recebe as chuvas mais próximas do céu. Também, quando os seus possantes galhos se abraçam com os ventos do temporal, toda a floresta sente o duelo dos gigantes. Parece até que as árvores vizinhas se abaixam, esperando o resultado da luta entre o pau e o vento, nas alturas do firmamento. É colossal! Lhe juro que é coisa muito terrível de colossal. Agora, quando o bicho-pau vence a luta, que os ventos se libertam dos braços-galhos, então o senhor gosta de ver, a enormidade dos ouriços que se alastram. O castanheiro-homem, esse, ri e acha graça do resultado da briga: Castanha no chão, princípio de colheita, é a safra. É a safra que começa. Mas a floresta estremecida e violentada agita inteira, ramos, galhos, flores e trepadeiras, num grito triunfante que sacode a terra e invade os campos, matos, e rios, por toda a redondeza. Porém, seu major, eu nem lhe conto, quando o vento consegue derrubar o bruto gigante da floresta. As entranhas da terra são viradas do avesso. - Por quê? Porque o próprio peso da enorme copa arranca todas as raízes. No chão, o papouco abre uma cratera, e na mata uma clareira. Confunde-se então seu major, o esmagamento de troncos, imensos troncos, com tenros arbustos, num terrível massacre de flores e frutos. - Não, seu major, o castanheiro não servia, era grande por demais.



Um dia, regressei da mata e comuniquei o meu achado:



- Pai, já escolhi a árvore.



- Que árvore?



- A árvore que vai ficar no meu lugar.



- Conversa fiada, menino, está ficando doido? Foi flechado de bicho do fundo, ou areado do bicho do mato?



Foi a única vez que eu me lembro, que o meu padrinho Possidônio até achou graça. Aí eu criei nova coragem.



- Eu não lhe disse que ia me embora?



- Olha, Joca, a conversa de Miguel, parece até que está apatetado o rapaz...



- Ara deixa, Terto, tu já não sabe que Miguel é assim?



Já tinha dito que ia embora, e só mesmo nesse momento, é que fiquei sabendo o quanto amava a minha mãe. Antes dessa conversa, tinha achado tão fácil sair de casa, correr terra, viajar pelo mundo, até mesmo só para me ver livre das implicâncias do meu padrinho Possidônio, queria porque queria me governar. Mas, nessa hora de partir, seu major, foi que eu senti mesmo a tristeza de sair e o peso da saudade que ia levar.



Felizmente, que eu tinha encontrado a árvore sonhada. Andei tanto pela mata, corrigi restingas, baixas, tesos, igapós, e ali bem pertinho, onde minha mãe nem precisava andar muito, estava o brutelo de pau mulato. Era um filhotão de pau! Um rapaz de pau! Linheiro, aprumado, roxo-moreno-esverdeado, procurando entre os ramos das outras árvores, um caminho mais fácil para o céu.



Lhe juro, que não havia muita diferença entre o meu jeito, a minha cor, o meu porte, e o filhotão de pau mulato. Era uma imagem digna e viva! Uma coisa só. Quando minha mãe sentisse saudade, podia recorrer à lembrança e encontrar de novo o filho representado na mata. Era só ver e olhar, escrito e escarrado o caboco plantado no visgo do barro. Sem pôr e nem tirar.



O pau mulato, o senhor pensa, não tem flor, nem fruto. Mas quando se parte um pedaço, o machado entra na casca fina como em carne de gente: O âmago reparte-se retorcido como feixes de músculos. Mas o mais parecido mesmo é a cor. É uma cor roxa-morena-esverdeada de caboco com impaludismo. Ou então: Roxa-morena-avermelhada de caboco afogueado de sol.



A minha namorada soube logo de toda essa conversa e um dia de repente ela apareceu:



- Credo! D. Joca, que pau Miguel foi escolher.



- Um pau mulato, minha filha! Roxo que nem ele, novo que nem ele. Que Deus não me castigue, mas Miguel é escrito-escarrado aquele pau.



- Pois eu nem sei o que digo, suspirou Joana.



Eu lhe juro, seu major, que eu não contava com a presença de Joana. Tinha procurado esquecer tudo nos últimos dias. Já bastavam os olhos espichados da mamãe, o silêncio de papai, acompanhando os meus movimentos e procurando fazer todas as minhas vontades. Meu padrinho Possidônio não dizia nada, mas era de desconfiar de tamanha proteção.



O que Joana tinha vindo fazer? Implorar mais uma vez que eu ficasse? Chorar na despedida? Recomendar pedindo que voltasse? Pra não entrar noutro assunto, fui logo dizendo:



- Como é, veio ver o pau mulato?



- Tua mãe já me falou...



- Vai, Miguel, mostrar para ela, onde fica o pau que tu escolheste.



Não sei como foi, seu major, mas não esperamos a segunda ordem. Entramos no mato como quem entra em casa. Com poucos metros nos abraçamos, e caminhamos em silêncio numa vereda estreita que ia dar justamente bem em frente da árvore escolhida.



- Está aqui, Joana, o pau mulato - disse pra ela- estancando quase que em riba duma árvore que crescia meio isolada, no meio dum mato cheio de aninga-pará: Tinha montes de cerrado pelos lados e muita folha seca pelo chão.



- Mas ... ainda é um fïlhotão! - falou Joana.



- E eu, o que sou?



- Tu já és homem - respondeu Joana - acariciando bem de leve o tronco da árvore com o rosto e com as mãos.



- É macio, não é? É liso e esguio, não é? Mas não verga! Só cai, decepado pelo machado ou lascado pelo vento.



Pois eu lhe conto uma coisa, seu major, que eu fiz só de malícia: Tirei minha camisa, me abracei com o tronco da árvore e perguntei pra ela:



- E a cor?



- Meu Deus, que coisa!



- Não te disse? É o jeito, a cor e o porte: Tudo igual!



- Igual igual - repetiu Joana - igual igual, mas não adianta nada...



- Por quê? Perguntei.



- Tu vai embora ...



- Mas eu volto.



- Tu arranja outra e fica por lá.



- Tu não quiseste deitar comigo no mato ...



- Se tu fica, eu deito.



Ai eu disse: - Então vamos fazer um trato. Agarrei as mãos dela, e sentamos no chão bem ao pé da dita árvore. Me lembrei logo, que eu bem que podia já ter passado aquela menina nos peitos. Se não fosse essa questão de honra, de casamento, de menoridade, ela já era há muito tempo minha mulher. Com ela, seu major, até que eu sempre tinha tido consciência. Por isso que aquele trato ali, aquela facilidade, aquela manimolência dela nos meus braços, dava até pra desconfiar. Com certeza era mais uma cilada. Podia ser até maior esperteza da minha mãe... Mas dessa vez eu pensei rápido, me lembrei da conversa dos cabocos na passação do gado do coronel Quintino: "Rabo-de-saia é pior que espinho-espera-primeiro. Tá fisgado, rapaz!” Ai, Joana me acordou desses longos pensamentos:



- Que trato, Miguel, já te arrependeste?



- Vamos deixar o nosso amor marcado? Foi o que eu disse só pra desconversar.



- Marcado de quê? De coração flechado neste pau?



- Que coração, Joana? Marcado que eu falo, é com o nosso corpo rolando neste barro. Depois que a gente fizer o amor, neste pedaço de chão, não vai mais nascer nem um pedaço de mato, nem um grelo de planta e nem uma promessa de raiz. Eu acho - eu disse pra ela - que só assim, o pau mulato pode ser uma digna lembrança para todos os juízos.



- Mas tu vai embora e me deixa no ora-veja... Se ao menos esta árvore fosse encantada pra me consolar...



- Vamos, Joana, te resolve.



- Olha, Miguel, eu deixo o meu coração gravado com as minhas unhas na casca deste pau, mas minha honra, eu só te dou se tu fica.



Nós se abraçamos, se beijamos, rolamos por cima de uma porção de cerrado que havia por lá. Joana depois ainda tentou gravar com as próprias unhas, os dois corações entrelaçados. Mas não houve mesmo jeito de ferir a lisa casca do pau. Eu já lhe disse: Pau mulato tem uma casca tão fina, tão fina, que até parece pele de gente. Foi preciso utilizar o canivete bem amolado, pra gravar os corações que Joana tanto queria que ficasse como lembrança. Mesmo gravando eu estava sabendo: que em casca de pau mulato, não há marca que aguente, porque o danado muda de casca que nem cobra.



Eu nem sei como lhe contar uma coisa dessas. Eu só sei lhe dizer, que quando eu comecei a conhecer todo o corpo de Joana, que ela se entregou toda para mim de toda abandonada, foi como se eu entrasse numa mata virgem pela primeira vez pisada pelo homem. Nem vou lhe dizer o que eu fiz com a pobre da caboca, porque nem eu mesmo sei como minhas mãos puderam dar conta de tantos desejos e tantos sentimentos. Mas uma coisa eu lhe garanto, porque já foi muitas vezes confirmada: É que se eu tivesse me atolado naquela ânsia de abandono, eu estava até agora amarrado naqueles cerrados e perdido naquelas matas.



Só quem não falou nada, foi mesmo o meu padrinho Possidônio. Como sinal de aprovação, me deu de presente uma bela faca, metida numa bainha por ele mesmo, só de propósito para minha viagem. Mas foi só mesmo na horinha da saída que ele me entregou com estes dizeres:



- Isto aqui, cabra da peste, é o teu passaporte, o teu salvo conduto e é também a tua passagem de ida e de volta. Esta faca é a tua chave do mundo. Se o mundo se trancar para ti, corta o nó, que a noite sempre tem que escurecer e o dia sempre tem que clarear.



De fato, seu major, estava escrito no meu destino, essa minha volta. Eu mesmo não sei a demora que eu sofri de tantos caminhos. O tempo tinha corrido o tanto que o mato tinha crescido, isto é: O tanto que o mato tinha crescido era o tanto que o tempo tinha passado. Os caminhos e rios subidos e descidos, andados e remados, não tinham marcado calendário na minha mente.



Quando voltei, todo mundo já tinha esquecido o pau mulato. Menos o meu padrinho Possidônio, que continuava com a mania de querer governar o meu destino. Mal deixou arriar a bagagem no chão e logo me inquiriu a respeito:



- Como é cabra da peste, cadê a tua faca? A faca que eu te dei como passaporte de ida e volta? Pois agora vamos visitar a tua lembrança?



- Que lembrança?



- O pau mulato.



- Será que ainda existe?



- Ô sumano, vamos vê. O desengano da vista é furar o zolho.



Será que ainda existe? Eu mesmo me perguntei. Ficou fiel à minha espera? O que podia lembrar agora o pau mulato? Os dois corações entrelaçados... Será que estava no mesmo lugar? Firme? Firme e altaneiro aguardando a minha volta? Que notícias podia me dar um pau mulato? Será que ainda é o meu espelho? Minha imagem? Um pau mulato? Um pau mulato lasca mas não verga! Rápido eu pensei e repensei o pensar.



Mas meu padrinho Possidônio não deixou mais eu falar nem conversar, até quis paresque interromper meus longínquos pensamentos. Ele é que estava mais cuíra de mostrar o pau mulato. Tanto que só faltou me empurrar no rumo do mato. E apesar do tempo que tinha passado, eu encontrei logo o caminho antigo. E só fui mesmo na frente, para ele não dizer e não pensar que estava me governando. Mas eu reconhecia que o mato mesmo ali por perto já tinha mudado. E quando cheguei pelas proximidades, comecei a desconhecer todo o terreno. Aí então eu principiei a falar comigo mesmo. Já estava até desconfiado que não era a mesma restinga do catauarí. Desconhecia quase todo o mato. Pelo mato que tinha crescido eu começava a avaliar também o tempo. O tempo. Tinha vergonha de indagar qualquer coisa pra o meu padrinho Possidônio. Acabei deixando escapar as simples palavras: Te esconjuro terra fofa, cadê as árvores que deixei aqui? Parei, pensei, olhei em redor, e reconheci algumas plantas. Aí eu vi que o terreno era o mesmo... Mas, e o pau mulato? O pau mulato? Meu padrinho Possidônio paresque achava que eu não sabia mais. Tinha um apuizeiro. Tinha um apuizeiro que não tinha mais tamanho, só que paresque ele não era daquele lugar. Também outras árvores tinham crescido por demais. Mas, o pau mulato onde que estava o pau mulato? Procurei por perto, novamente, entre tajás e cipós, ao menos um tronco cortado, uma raiz arrancada, um pedaço de pau lascado, que denunciasse o pau mulato. Meu padrinho Possidônio só olhava, mas eu estava certo, que tinha deixado ali, viçoso e já bem alto um filhotão de pau que era a minha imagem. Será que o apuizeiro tinha tomado conta de tudo? Essa era uma árvore que era uma enormidade. Só as raízes, seu major, eram mais altas que muitas árvores em redor. Cinco homens de mãos dadas e braços abertos - o senhor pensa - não abarcavam aquele tronco desconforme de raízes. Só de me aproximar entrei no meio delas. Aí que eu vi que eram enormes por demais. Meu padrinho Possidônio me olhava só de esguelha As raízes, seu major, pareciam muito mais entrada de caverna. Também eu achava que deviam parecer com um grande polvo virado pau dentro da mata Tive que subir numa delas para alcançar o galho mais próximo. É que aquela árvore quase não tinha tronco. Trepei me agarrando pelos cipós. Já bem do alto, quando me agasalhava numa forquilha dum enorme galho, foi que descobri o enorme do buraco. Sim, seu major, sim senhor, era um buraco. Um buraco que ia desde a copa até no fundo da terra, talvez até por baixo das raízes. Aí que eu vi, que o apuizeiro não é uma árvore conforme, mas sim uma parasita desconforme que se enrustia naquele tecido colossal. Aquilo que eu tinha visto de fora e de baixo, não era um tronco formado de raízes. Parecia mais: Que mil árvores tinham se juntado, se abraçado, e se enrolado num arrocho só. Mas por dentro ficava aquele buraco, onde as cobras, os ratos, os morcegos e os lagartos deviam ter escolhido para morar. Meu padrinho Possidônio só me olhava, e eu tinha até me esquecido que já era tarde. Tarde demais. Tanto que eu tive necessidade de dar uma olhada por dentro do buraco, antes que o sol descambasse de vez. Ai, um reflexo num lispe bateu de repente numa forma roliça que eu jurava que se movia A cor, era duvidosa, seu major, vermelha-roxa-meia esverdeada. Me pus logo de guarda. Podia ser, podia ser uma cobra, um rabo de lagarto, qualquer bicho que logo podia me saltar. Olhei bem, firmei a vista e tomei todo o cuidado. Mas não era cobra não, seu major. Era um galho, um simples galho. Ai eu me aproximei um pouco mais. Afastei os ramos, arranquei os tufos de parasitas, quebrei tranças e cipós. Encontrei aquilo que meu padrinho Possidônio sabia que eu quase adivinhava: O filhotão de pau mulato. Ai que eu olhei firme para o meu padrinho Possidônio. Mas o escuro da mata já não deixava eu ver se os seus olhos já estavam descarregados daquela força de comandar. Não me lembro também se falei alto ou se falei baixo. Nem sei bem se os meus pensamentos chegaram a sair como palavras. Mas, seu major, o que eu pensei ou disse pró pau mulato, é bem difícil de resumir agora porque foi um desabafo. Falei para ele como quem fala para um amigo, para um companheiro e para um irmão: Que foi já então que aconteceu, sumano pau mulato? Será que este traiçoeiro senhor apuí da varja te agarrou no ar? Ou te pegou pelo pé, nascendo do visgo deste barro? Ou foi passarinho, pipira, tem-tem, japiim, canário, maria-preta que cagaram nas tuas folhas a semente da erva maldita? Como já então, sumano pau mulato, pra tu deixar esse danado de apuí entaniçar teu corpo todo com esse poder desconforme de raízes? Nem acaso viste o inxirimento das flores querendo diz’que brincar nos teus cabelos? Ou te atacaram de morte, feito puchirum? Se coliaram vento, céu e chuva, pássaro, folhas e flores, para te amarrar de nó cego, e chupar teu sangue feito sanguessuga? Viste em que deu a gita sementezinha mal a mal caída na bosta do japiim? Olha só, a tua pavulage de pau danisco que lasca mas não verga, querendo ser o pai-dégua da mata! Agora, cadê sustança? Cadê gogó, cadê tutiço, para sair deste buraco? Ou será que te deu a tísica doença dos pobres bichando de repente o teu pulmão? Olha, sumano parceiro pau mulato, agora é que é: A noite chegou para completar a tua triste sina de planta asfixiada.



De fato, seu major, a noite tinha chegado. Arrastando os pés de leve nas folhagens, entrando devagar pelas frestas das matas, apagando o luzimento das águas dos rios, ela tinha chegado para ficar. Tinha coberto tudo com aquela tinta encardida que até parece que vem do fundo da terra na cor do barro. Estava tão escuro, que careceu o meu padrinho Possidônio acender a poronga para me aluminar. Com a luz da lamparina, as imensas raízes jogavam as sombras mais terríveis. E o pau mulato lá dentro do buraco, com certeza já nem podia respirar.



Mas mesmo dentro daquela noite, eu pude ver a grande diferença entre a árvore e o homem, entre a imagem e a pessoa, entre o dia e a noite, e entre a vida e a morte. Não sei se o senhor me entende, seu major, mas eu também compreendi naquela hora, que meu padrinho Possidônio me governava pelo silêncio...

Nenhum comentário: