domingo, 19 de dezembro de 2010

COMO SE FAZ UM GUERRILHEIRO - Conto /fragmento -




Eu lhe disse que não sabia a idade dos meus sete filhos, porque guardava só o momento devido da fabricação dos cabras. Como já lhe disse, só guardava o ato, o ato vivo. Mas teve um, o último, que eu senti que era mesmo já o derradeiro. O derradeiro também dessa vontade que eu tinha de povoar o mundo.

O compromisso do meu sangue e a força da minha vivência paresque terminava em plantio de novas gentes. Acho que findava paresque nesse filho índio. Foi o último, o único — o senhor pensa — que não nasceu só de mim, da minha única vontade cega pra cruzar meu sangue em nova vida misturada de outras raças e outras valências. O desejo de possuir mulher bem diversa, diversa das da minha gente, já tinha gerado todos os outros conforme eu já lhe disse. Mas, Esse Um, nem sei como lhe diga, até hoje não sei como nasceu. Não sei nem mesmo como nasceu em mim o próprio desejo no rumo desse filho agreste.

Que ia ser o único e derradeiro feito com vontade ge­rada fora do meu corpo, eu nem sabia, lhe juro que eu não sabia. Os outros, era na hora que eu sentia. Já agarrado e dentro da mulher, queimando e esgui­chando a marca do meu rastro. Já agarrado com a mulher que ia ser mãe e em pleno esforço de cavar no fundo o gosto amargo-e-doce da criação. Eu lhe juro que eu sentia a vida refazendo a vida. E nem lhe conto. . .

Mas esse, esse derra­deiro e último da minha própria lavra, esse, esse veio pares­que mais da terra, mais da água e muito mais das plantas que cresciam. Não sei se pelo cheiro do vento passando pelos galhos ou se das próprias folhas roçando a minha fronte. Não sei se das folhas caindo de leve sobre o barro ou se das folhas mortas afundando com meus pés na própria lama. Eu me lembro bem, isso eu me lembro. O vento vindo pelas folhas e o cheiro vindo pelo vento era uma forma de perfume exalando por toda parte. Quando dei por mim, estava abraçando uma árvore. Era como se fosse uma mu­lher virgem recebendo a pura água. Lhe juro que nesse momento foi mais que eu senti vontade de emprenhar a natureza. Ali mesmo eu senti uma tesão à toa — o senhor pensa — tesão mesmo arrepiando e endurecendo o meu vergalho. 

Não era só lembrança da minha infância quando eu desenhava no barro um negócio tufado de mulher e metia o meu vergalhozinho teso de moleque numa racha lisa e úmida de água escorrendo no barranco. Mas era a mesma força viva que agora vinha misturada com as cores, os sons e com os cheiros exalando a própria terra. Era como se os cipós trançados, balançando, roçassem de repente todos os meus nervos. Era só pisar no chão e afundar os pés nas folhas quentes, pra sentir elas grelando e crescendo de novo em meus cabelos. Era só entrar na mata, subir mais e mais o rio e deixar a terra pisada e repisada pra receber nas plantas dos pés, nas palmas das mãos e na cava dos braços, o ar entranhado de tanta força agreste. As cores, o senhor pensa, já não entravam mais só pelos meus olhos. Os verdes entra­nhavam no meu corpo, subiam pelas pernas e fechavam o céu por cima da minha cabeça. E feito claridades-sombras, estendiam caminhos sempre cada vez mais pra dentro. Muito mais pra dentro.

Depois que eu entrava mais na mata, os verdes apa­gavam até as marcas dos meus passos. Assim eu me embre­nhava. E assim como os sons, os cheiros e as cores arretavam os meus desejos, assim eu sabia que eu estava sendo condu­zido por algum mistério. Mistério não, encante! Gostos e desejos vindos paresque de muito longe. De muito longe, como se fosse a posse de uma antiga herança. Por esses cheiros, por esses sons e por essas cores, eu ia me embre­nhando na mata e em mim mesmo. Mais pra dentro, muito mais pra dentro.

Quando eu já tinha perdido quase os caminhos das muitas voltas, que eu já estava acostumado com a vida assim agreste, foi que eu compreendi a razão das minhas vontades. Eu estava me aproximando sem saber do caminho de alguma tribo. Queria derramar a água no rio, o san­gue no sangue, o cheiro no vento, a terra na terra. Fazer como a chuva que sempre volta pra dormir com o rio no leito da corredeira. Uma força me guiava, um encante me chamava pra fazer um filho numa índia brava. Os meus conhecimentos de mata também comandavam sem rumo essa caminhada. Os esforços que eu fazia como balateiro pra não encontrar índio na minha rota, esses mesmos esforços pro­curavam as distâncias das malocas. Só que por outros caminhos. Por onde nunca tivesse passado gente, gente civi­lizada da cidade grande. Um filho meu com uma índia, tinha que ser feito assim na natureza. Não queria ver um filho meu feito esses índios mansos, que servem aos padres de empregados ou como esses que andam nas cidades servindo de propaganda pró Governo e de palhaços pra turistas. Por isso, as forças da terra e o azougue do meu sangue me guia­vam por caminhos bem diversos.

Até hoje, não sei dizer quanto tempo durou essa mi­nha viagem e vivência pelas matas. Só depois de muito tempo foi que eu senti que andava feito doido atrás de uma índia, paresque. Depois que acabou meu mantimento, ainda comi muito peixe, muita caça e muita fruta do mato. Conhecia muitos costumes de índios que podiam satisfazer as minhas poucas vontades. Mas não queria conviver com eles nem findar meus dias numa maloca. Eu sempre acreditava na força dos meus olhos e na quentura do meu sangue pra me ajudar a fazer um filho numa índia. Acho que foi isso: foi o olhar no sangue e o sangue no olhar; olhar sangrando e o sangue grelando, que impediu que a indiazinha gritasse. Quando caí em cima dela, na beira do rio, nem lhe conto o modo como a bichinha me encarou já quase sem nenhum espanto. Não vou lhe contar o tempo que gastei pra me aproximar dessa índia em pleno mato. 

Levei tempos pra encontrar ela sozinha, fora da companhia dos outros da maloca. Meninazinha ainda, mas sabidinha do ofício, ela paresque com­preendeu logo que eu queria roubar ela pra levar comigo. Aí que o entendimento foi paresque só dos olhos e no corpo, o senhor pensa. Não por mim, que tinha visto ela nua dês do primeiro instante. Primeiro, sozinha, com a cabeça boian­do feito balde-cuia dentro d’água. O rio largo punha dis­tância nas distâncias: boiava só a imensidade. Depois, cada vez mais de perto a ponto de poder ver a água escorrendo em pingos por cima da nua pele bezuntada. Nessas horas eu via o corpo nu sem penas, nem enfeites. Nem lhe conto as carreiras que ela dava. Eu aí me escondia na mata com medo que ela mesma me denunciasse. Nessas carreiras ela ficava mais nua ainda, porque não deixava nem o rastro. Aí eu me escondia na mata até que ela com sua presença me dissesse de novo que eu estava fora de perigo.

Do segundo encontro em diante, era sempre ela que me procurava. Podia me esconder na grota mais disfarçada da mata, podia trepar até no galho de pau mais alto, que ela sempre arranjava um jeito de chegar por perto, com aquele arzinho desconfiado. Hoje, eu sei por que quando eu caí em cima dela de surpresa, ela não fez nem resistência, nem alarde. Ela fingia que estava descuidada como maneira de me atrair e como sinal de que não tinha ninguém pela redondeza.

Foi o momento mais natural e paresque a maneira mais simples de praticar o meu ofício. Nem foi preciso olhar, falar, fazer qualquer gesto. Foi o desejo se misturando com o prazer, juntando todos os momentos. Nossos corpos nus se atraíram como visgo. Quando demos por nós, já estávamos enroscados um no outro: primeiro no barro, depois na lama, até acabar por dentro d'água, rolando e nadando como peixes. Ou quem sabe, até voando como pássaros. Pra­ticamos, dias, as formas mais livres de todos os afetos. Na­dando, trepando, voando, sonhando, quase se afogando, ou simplesmente ouvindo a terra estremecer e vendo a mata fechar o nosso mundo. E não posso dizer que, com essa índia, eu senti no exato momento o aviso que eu sempre sentia quando fazia um filho homem. Ora era na água, ora era na praia, ora era no mato, machucando ervas e aca­mando folhas secas. Mas em tudo eu sentia a natureza. Sen­tia que estava devolvendo o meu sangue e que o filho nas­cido daqueles eitos nunca mais ia ser visto. Era como se eu tivesse plantado uma árvore na floresta virgem. Deixado escapar uma caça na clareira. Libertado um pássaro num céu bem alto ou derramado n'água um baita cardume de peixes vívos. Assim eu tinha entregue esse meu filho à natureza. Só que pra ele, eu queria uma vida ainda mais livre. 

Esse — eu lhe digo — esse meu filho com essa índia é pura invenção do meu ofício. Forças do sangue borbulham pelos olhos e pelas partes. Esse ofício de fazedor de homens me indica. Tenho certeza que deixei esse filho grelado na­quela indiazinha. Mas também é só isso a que meu pensa­mento se atreve. Eu não quero nem lhe dizer como imagino esse meu filho índio. Dele eu não sei nem o nome. Tenho até medo de prender o seu destino amarrado no meu pensa­mento. Quero ele sempre livre, enquanto for livre a natureza. Agora, eu lhe confesso: só tenho medo que ponham por perto dele uma estrada, uma fazenda ou então en­contrem por perto de suas terras alguma mina. Olhe, eu ando muito consumido. Penso no perigo que corre a liber­dade desse meu filho índio. Tomara que essas estradas que estão cortando as matas não passem ainda por perto das terras dele. Nem por perto, nem por longe. Quando penso nele sempre digo: Deus te livre, meu filho, dos perigos duma estrada ou duma fazenda, Deus te livre ainda mais das botas de sete léguas dessa imundícia de progresso.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A MARGEM OCULTA - POEMA DE JURACI SIQUEIRA PARA BENEDICTO MONTEIRO

A MARGEM OCULTA


- Para Benedicto Monteiro -



Caminheiro errante Orfeu demente

nascido entre cipós e jarandubas

nas brenhas deste verde labirinto

em ano dia e hora sepultados

a sete palmos da memória turva,

aqui deixo este canto calcinado

pelo fogo insaciável das palavras

àqueles que procuram na existência,

uma razão qualquer para viver.

Rasgando o medo e a dor fazendo fendas

na vida eis-me aqui para dizer-te

que vi um girassol desabrochando

sob o lençol de uma manhã vindoura.


E tu – fonte de sonhos lacerados

pelo peso do lenho e dos pecados –

que tens de alvissareiro a me dizer?


Acaso vislumbraste no horizonte

algum novo caminho alguma ponte

que te ponha a salvo do motim?


O tempo dita as regras deste jogo:

depois de batizar-te a ferro e fogo

te enforcará com os raios da manhã!


Já declina o Sol . A noite avulta!

É tempo de explorar a margem oculta

desse rio de mitos e conflitos.


Eu sou. Tu és. Nós somos afluentes

desse rio – medula do universo

que nasce no infinito e desemboca

no âmago do Ser que somos parte.


Agora que já sabes que és rio

deves saber também que o teu destino

é fazer teu caminho caminhando:

tu és ao mesmo tempo oleiro e barro

tu és num só momento o boi e o carro!


E como rio deves morrer todas as noites

e renascer todos os dias sempre menino

e sempre outro – embora sendo o mesmo

que há milênios corre entre delírios

de lendas e contendas reveladas

nas pedras que circundam mil segredos!...


É preamar. Em plenilúnio a Lua desponta

e monta guarda enquanto o Sol descansa.


Indiferente o rio corre na Vida


e a Vida por sua vez corre no rio;

o rio fez do correr perene lida

e a vida do viver eterno cio...




Antonio Juraci Siqueira







quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

FRAGMENTO DO ROMANCE VERDEVAGOMUNDO DE BENEDICTO MONTEIRO

Procurava o rádio pela casa para me devolver o contacto com o mundo. Talvez ele também me devolvesse a estabilidade. Tinha deixado o pequeno aparelho com meu tio, para que ele se distraisse na minha ausência. Mas agora eu sei a falta que ele me faz. Fi­quei completamente marginalizado, somente ouvindo o murmúrio da mata, o escorrer das águas, os gritos constantes dos pássaros, e à noite, o zumbido segregado dos carapanãs. Não senti a paz so­nhada da floresta. Não, não senti nem ouvi o som, o som puro do vento.






VENTO






Vento-som, vento-flor, vento-cor, vento-hora, vento-tarde, vento-manhã, vento-encanado-de-repente, vento-longo, vento-rente, vento-sombra, vento-quente; vento-em-folha-verde, vento, vento-em-folha-morta, vento-em-ramo-vivo, vento-em-ramo-seco, vento-em-folha-virgem, vento-em-palha-seca, vento-em-palma-aberta, vento-em-copa-alta, vento-em-copa-basta, vento-em-copa-rala, vento-cala, vento-fala, vento-fala-assopra, vento-zune-águia, vento-vem-da-águia, vento-vem-da-água, vento-range-o-galho, vento-cio-das-folhas, vento-geme-em-caule, vento-rosna-em-jaula, vento-range-o-galho, vento-corta-em-atalho.






Não, não senti o cheiro agreste.








Cheiro-forte, o cheiro-aroma-caule, aroma-folha, aroma-falho, aroma-galho, aroma-flor, amma-palma, aroma-palha, aroma-casca, aroma-raspa, aroma-lasca; aroma-camada-de-folha-viva, aroma-camada-de-folha-podre, aroma-camada-de-folha-seca, aroma-camada-de-folha-morta, aroma-ramo, aroma-ramam, aroma-cama, aroma-cama-de-pau-caído-durante-a-noite, aroma-de-palha-branca, aroma-de-palha-preta, aroma-de-palha-seca; aroma-fruto, aroma-fruta, aroma-sombra-de-vento-de-vôo-de-pássaro, aroma-sombra-de-asa-branca, vento-asa-de-aroma-sombra, vento-aroma-espanar-de-asa-negra, asa-sombra-vento, folha-galho-galharia, paz, pousada, mata-rala, mata-densa, mata-amansa-materia, mata-fechada, mata-aberta, clone-caule-tronco, tronco-e-raízes, galhos-folhas-e-lianas, erva-arbusto-caule; caminho-aberto, caminho-incerto, caminho-rumo-apagado-pelas-folhas, pico-picada-estrada, espinhos-flores-folhas-espinhos, clara-clareira-para-o-campo; mata-mangue-saída-para-o-rio...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O PAPAGAIO O CONTO DE BENEDICTO MONTEIRO



Antes de terminar aquela estória de fim de mundo, preciso lhe contar uma estoriazinha de papagaio. Só pró senhor ver, como aqui, os bichos e os homens se igualam. O caso se deu com outro capanga do coronel Laudemiro. Não, dessa feita não foi com o compadre Franquilino. Foi com um negro retinto que já nem ele se lembrava do nome. Sabiam que o preto vivia sempre com íntima raiva da natureza. Tanto que não sabia lidar nem com os homens. E por isso maltratava qualquer ser vivente mesmo que fosse a planta mais inofensiva.


Tinha sido dispensado das fazendas porque acabava com os cavalos e maltratava por demais o gado sem nenhum propósito. Só era contratado pra serviços da maior brutalidade: caçada de onça, derrubada de mata virgem, queima de roçado, castração e ferra de gado, matança de jacaré e acerto com balateiro. Pra ferra e castração, ele já era dispensado, porque todo animal castrado ou ferrado por ele, criava bicheira e empustemava no lugar onde ele mal punha o dedo. Porco, então, era o que ele mais gostava, porque o bicho gritava. Porco ele gostava mesmo era de matar. Mas matar a pau, a terçadada ou então estraçalhado pela matilha de cães.


Quando o coronel Laudemiro adquiriu os cães de raça lobo, pensou logo em Nego Tinta pra cuidar. Os nomes dos bichos foram escolhidos de acordo com a fama do tratador: Mete-Medo, Lúcifer, Quebra-Ferro e Rompe-Mato. Eram uns cães enormes e brabos que Nego Tinta só fazia enraivecer cada vez mais. Só ensinava maldade prós danados. Gado montado na mata, porco arisco amoitado no campo, era serviço que o coronel Laudemiro deixava a cargo de Nego Tinta com a matilha de cães. Quem quisesse ajudar Nego Tinta nessas empreitadas, só experimentava uma vez. Voltava chocado com tanta maldade do nego extravasada. Ele só respeitava mesmo o gado que o coronel tanto recomendava. Mas, os porcos, quando topava uma manada amoitada no campo - tomara o senhor visse - o estrago que ele e os cachorros faziam nos animais. Ele sozinho marcava os porcos: Tanto fosse barrasco, capado, leitoa ou leitão. No meio da caçada escolhia sempre os mais valentes e os mais ariscos pra matilha se fartar. Aí, ele mesmo também disputava. Açulava os cães o possível e participava da luta como se ele mesmo fosse um animal. De longe, era capaz de ninguém distinguir o negro no meio dos cachorros em matilha. Até latir ele latia imitando os lobos. E há quem diga que ele mordia os porcos como se fosse o cão mais feroz. O porco escolhido servia de pasto e era logo estraçalhado. Pois há também quem diga que Nego Tinta comia a carne crua sangrando com as mãos.


Chamavam Nego Tinta, pra não usar o outro apelido que ele tanto não gostava: Matinta, Matinta-perêra. Mas, se assobiavam imitando o duende da mata, era muito, muito pior. Ele aí ficava doido de raiva e queria logo brigar. Alguns respeitavam como se o negro fosse a própria assombração. Ele era mesmo muito feio e muito forte. Havia quem até desconfiasse que ele ao menos fosse criatura de Deus. Era gente-assombração-meio-animal-da-mata. Era Matinta. Mas, quem encarasse o negro com coragem, sabia logo que ele só era valente em matilha, por trás das árvores em tocaia, ou com terçado 128 nas mãos. Tinha medo de cobra, de sapo, e de gente. E por isso descarregava toda a sua raiva no primeiro ser que não pudesse se defender. Caminho que ele trilhava na mata, era conhecido pelos estragos que ele fazia nas árvores. Galhos cortados de maldade. Troncos decepados só dum golpe: Raiva na lâmina afiada do terçado. Terçadada. Golpe cravado no âmago. Principalmente se o pau tinha leite pra derramar. Gostava de ver árvores sangrando. Não, não podia ver muruxizeiro, taperebazeiros ou mungubeiras que não retalhasse de alto a baixo. Era paresque pra poder ver o leite vermelho escorrer. Alguns tinham até ouvido ele dizer: Sangra, maldito de pau!


Único trabalho que ele levou mais tempo foi na balata, porque as árvores sangravam. No seringal, quando o capataz foi fazer a vistoria na estrada onde ele trabalhava, viu que todas as árvores, por causa dos cortes profundos que ele dava, iam logo morrer. Ele sugava todo o leite e sangrava a árvore até o âmago. Coronel Laudemiro transferiu ele então para a balata. No balatal, ele podia matar todas as árvores porque o leite só se tira uma vez. Mas ele gostava mesmo era de ver sangue vivo e luta desigual. Por isso que ele era o tratador da matilha de lobos. Coronel Laudemiro queria que os cachorros ficassem cada vez mais raivosos e ferozes. Nego Tinta tinha, por isso, carta branca com a matilha de cães.


Sempre feio, sempre nego e sempre forte, Nego Tinta andou absoluto na fazenda até no dia da chegada do papagaio. Ainda mais, que tempos depois que o coronel recebeu de presente o papagaio, veio também uma jibóia muito grande que o coronel queria remeter vivinha pro museu. Tirada da caixa, a cobra enorme dava uma volta completa numa sala da fazenda Doze a quinze metros de comprimento, ele media. Quando se enroscava, o rolo da bicha ficava da altura de uma barrica que tinha num canto do armazém. Era uma bicha enorme, é o que contam. O alimento pra ela começou a ser problema desde o primeiro dia. Cutia, preá, toro, camaleão, guariba, mucura e até macaco, Nego Tinta jogava no meio do rolo. Fazia questão de botar os animais vivos, pra apreciar a cobra engolir um por um. Também levava pássaros. E ficava apreciando a jibóia atrair devagar as embiaras. Começavam voando alto. Voavam, voavam, voavam. Depois iam baixando, baixando, baixando, até ficar voando em círculo. O círculo ia se fechando, se fechando, se fechando até não poder se afastar do alcance do bote. Em dado momento, uma laçada certeira espalhava penas e gritos. A cobra fechava os olhos e engulia o vôo no ar. Nego Tinta nunca encarava com a cobra porque tinha medo de ser atraído pela força dos olhos.


Nesse tempo, o papagaio já falava coisas ensinadas pelo pessoal da fazenda. E assobiava. Assobiava justamente o assobio da Matinta-perera: ma-tiiinnn-ta-pe-rrreeeprrraaa, Nego Tinta ficava possesso com a ave faladora. Mas, como tinha a matilha de cães e a cobra para tratar, não dava muita importância ao papagaio. Soltava os cães no campo e alimentava a cobra. Vivia ocupado só com a maldade. Os cães, nas suas mãos, saltavam como se fosse a continuação de seus braços. E a matilha toda se transformava em partes vivas do seu corpo: prontas pra saltar. Na mata, no campo e no escuro, ninguém separava Nego Tinta dos cachorros.


O papagaio de tanto ver Nego Tinta só com os lobos, deve ter pensado, que sozinho, ele era inofensivo. Facilitou um pouco e caiu logo nas garras. Pensou que iam lhe arrancar as penas, porque era a primeira coisa que faziam quando ele andava voando muito alto. Mas, Nego Tinta confiava cegamente no poder de atração dos olhos da cobra. E queria ter o prazer de ver com os seus próprios olhos, aquela ave voar, voar, voar, sem poder se afastar do círculo da morte. Trancou a sala, jogou o papagaio pra dentro e ficou apreciando de um buraco da janela. Sentiu-se logo vingado quando o papagaio, de medo, ficou logo mudo. Depois viu o papagaio murcho, arrepiado, sendo atraído pelos olhos da jibóia. O círculo do vôo da ave arisca ia ficando cada vez mais fechado. Já só voava por cima da cabeça da bicha. Mas, o estranho, foi que a cobra em vez de dar o bote, fechou os olhos e ficou completamente inerte. Assim paresque o papagaio estava são e salvo. São e salvo.


Foi o próprio coronel Laudemiro quem ordenou que retirassem o papagaio. Assim mesmo, sem perguntar quem tinha feito àquela malvadeza. O papagaio era uma ave faladora e inteligente. Cantava, falava, imitava e assobiava. Era uma ave muito imitativa. Assobiava imitando a Matinta-perêra que Nego Tinta tomava como se fosse só pra ele. Ninguém atinava porque aquele papagaio tinha sido capaz de se livrar dos olhos da jibóia.


Mas, como o papagaio saiu são e salvo da boca da cobra, correu logo a notícia de que ele era bicho de Santo. Só podia ser bicho-de-santo dado em promessa. Disseram também que ele era capaz de ter proteção de São Lázaro. São Lázaro, conforme o senhor sabe, também é protetor dos cachorros.


Nego Tinta com a cobra grande trancada na sala, os cães em matilha sob o seu comando, reinava na fazenda cada vez mais absoluto. Só que cada vez mais crescido em raiva e maldade contra o pobre papagaio.


Quando o coronel Laudemiro remeteu a cobra grande para o zoológico, foi que Nego Tinta ficou mais diminuído no mando de sua maldade. O despotismo de crueza aumentou por demais em cima dos cachorros. Por isso também ele passou a prestar mais atenção nos assobios do papagaio. Toda vez que a ave faladora assobiava nas suas costas, ele se vingava. Se vingava com quem quer que fosse. Foi aí então quando começou a usar chicote. Ele chamava açoite e trazia sempre enrolado no braço como se fosse uma cobra. Mas o coronel Laudemiro paresque não sabia de todas essas malvadezas. Não sabia. mas adivinhava, porque passou a requerer os cachorros pra longos passeios no terreiro. O coronel - eu já lhe disse - era um homem enigmático. Ficava horas com os cachorros passeando presos nas coleiras. Quando viam qualquer coisa se aproximando do terreiro, arrastavam o velho nas correntes. Mas quanto aos outros animais, ele era indiferente, só não queria que espancassem o gado e os cavalos. Contudo, os cachorros sentiram logo a mudança. As mãos do coronel não eram como as mãos de Nego Tinta. No segurar da coleira, no roçar de dedos na cabeça, na falta do terçado na cintura, no zuar do chicote e até no cheiro de suor e na altura do grito, os cachorros começaram a sentir outro tratamento. Mas quanto mais estranhavam, mais apanhavam pra ficarem mais submissos.


Numa dessas vezes, Nego Tinta açulou os cachorros contra o papagaio e foi aquele deus-nos-acuda na fazenda. A ave faladora apanhada de surpresa, voava de boca em boca por cima das cabeças dos lobos. Gritando e falando aquela fala misturada de bicho e gente, safava-se como podia dos dentes afiados e da maldade do negro. Os cachorros saltavam no ar, latiam e ladravam, mas paresque só queriam brincar com as penas soltas no vento. Porque os cachorros não mataram o papagaio. Nego Tinta ficou mais raivoso ainda. Pediu ao coronel que se desfizesse logo daquele louco azarento. Era um bicho inútil e por demais implicante. Tão ruim, tão ruim, que até a cobra que não enjeitava nada, tinha enjeitado ele pra comida. E era por demais arisco. Já de cima do beiral da casa ou do galho das árvores, assobiava toda vez que via o negro passar sem os cachorros. E todas as vezes e com muita malícia, assobiava o assobio da Matinta-perêra: aquele assobio fino, trinado e entrecortado que a assombração lasca na mata em noite de encante, diz'que. Diziam que se fosse de noite, o assobio do papagaio arrepiava qualquer vivente. Mas o negro só faltava morrer de raiva. E como não podia agarrar a ave, esperava a primeira saída do coronel para se vingar do dito cujo. Enquanto isso, quem pagava eram os cachorros.


Dito e feito: Quando o coronel chegou da viagem, a primeira coisa que ficou sabendo foi que o papagaio tinha desaparecido. Rastro? Vôo não deixa rastro. Vestígio? Pista? Asa-pra-que-te-quero? De galho em galho papagaio tinha achado o mundo. Papagaio tinha voado. Voado? Papagaio tinha asa curta. Maldaram logo do negro só por maldar. Procura então o papagaio. Procura o papagaio. Bicho de estimação do coronel não sumia assim da fazenda sem deixar rastro. Foi do beiral? Mucura podia ter passado o louro no papo. Mas como já então, se era protegido pelo santo? Assim mais que era afilhado de São Lázaro, escapou de boca da cobra só por milagre. Procura, procura então o papagaio. Ave bonita e faladora de estimação do chefe. Ia fazer muita falta no beiral da casa, na trincheira do curral e na corda da campainha que espantava os periquitos. Procura, procura a ave. Mete Nego Tinta em confissão que é capaz de ele dizer o paradeiro. Mete o negro em brio. Onde é que andava o negro? Onde andava Nego Tinta? Desaparecido? Desaparecido será? Levou será o papagaio? Matou será a pobre ave? Soltou será na mata a pobre vítima? Ou levou pra muito longe? Procura, procura o papagaio. Procura pelas árvores, pelas casas, pelas vizinhanças e por toda a redondeza. Procura-procura, Acha-não-acha, Vivo-ou-morto, perto-ou-longe. Procura o papagaio, procura-não-procura, acha-não-acha, encontra-não-encontra o bicho estará morto?


Ouviram falar em bicho assobiando no mato com fala de gente. Onde andará, será ele? Será ele? Diz'que ouviram já gritos pra banda do campo. Ou foi bem pra o lado da mata? Na mata ou no campo terá ido com algum bando. Procura por onde há bandos de maracanãs e curicas. Vasculha então o terreiro, vasculha a mata por perto. Vasculha o cerrado que ele deve de estar por algum canto. Foi. Foi Nego Tinta. Foi-não-foi. Foi. Foi Nego Tinta. Todos já sabiam, mas ninguém tinha coragem de dizer. Os cachorros sem o tratador, também já farejavam, presos. Pelas mãos do coronel eles latiam, ladravam e farejavam tudo. Estavam será sentindo falta do negro? Queriam paresque correr e rebentar as correntes. O latido era tão grande que o coronel resolveu ele mesmo assumir o Comando. Enquanto Nego Tinta não aparecesse, o coronel era o único homem capaz de se aproximar dos cachorros. Assim mesmo, naquele estado, já era mais difícil: os animais estavam umas feras. Ninguém podia se aproximar dos limites. Além do cercado grande e do curral havia o terreiro. Mas, do terreiro, quem podia se aproximar sem consentimento? Naquela hora é que ninguém podia se aproximar. Tinha corrido mundo a fama da matilha. Era perigo tanto pra bicho como pra gente.


Depois que acharam o papagaio, foi que o coronel reparou bem nos cachorros: Eles paresque estavam ainda muito mais feras. Não paravam de latir nem de saltar nem de farejar. Sentiam qualquer coisa só pelo faro.


O papagaio, coitado, não falava. Estava todo depenado, murcho, encarquilhado, todo roxo, mas a vida ainda aparecia nos zolhos. Já nem parecia uma ave. Foi encontrado no meio do cerrado em cima dum bruto formigueiro vivo. Assim sem nenhuma pena, era uma coisa triste e feia. Ninguém tinha certeza, mas todos desconfiavam de quem tinha feito aquela malvadeza. Arrancaram até as menores penugens, deixaram o bicho nuzinho em pele viva. Ninguém podia comparar com a ave-verde e faladora aquele monte de pele ensanguentada Assim mesmo o Coronel mandou que passassem andiroba e cupaíba no que restava do papagaio. Botaram numa cesta forrada de pano vermelho e penduraram o bicho no beiral da casa Fizeram tudo pra ver se o louro escapava dessa judiação do negro. De lá, do beiral da casa, paresque antes ele gostava de gritar pro gado. De lá, ele também gostava de arremedar curica e assobiar imitando a Matinta-perêra pra danar o negro. De lá, ele catava as penas se arrepiando todo, gargalhando como gente e vigiando a redondeza. Olhava muito longe o campo e era sempre o primeiro que dava aviso pros cachorros. Os lobos pulavam, saltavam, ladravam, mas ficavam presos nas correntes. O papagaio então voava pras mangueiras, pousava no curral e ficava gritando vaquejada das trincheiras.


Naquele momento ele ficara no beiral da casa, mas já quase à morte. Já não era mais uma ave, uma ave-verde-faladora. Era então um montão de pele encarquilhada, com um bico inútil, e malícia apagada nos olhos murchos. Por isso mesmo, o Coronel mal teve tempo de reconhecer aquela fala. Fala, não grito. Grito em tom alto de muita morte, muito desespero. Grito de muito perto e de muito longe. Grito de morte-e-vida, de vida-ou-morte, de raso-e-fundo, de raiva-e-dor, de bicho-ou-gente, de gente-e-bicho. Grito que partia do beiral da casa açulando os cachorros: Arriba, arriba, Rompe-Mato. Corre, corre, Quebra-Ferro. Avança, avança, Lúcifer. Pega, pega, Mete-Medo. O Coronel só caiu em si quando os cachorros tomaram as correntes de suas mãos e se largaram em louca disparada pelo campo. Quando viu ao longe o vulto negro. Estava mesmo muito longe pra se saber, pra se saber o que os cachorros acuavam. Mesmo assim, se fosse gente estranha à fazenda, ele sabia que estava correndo perigo.


Só teve tempo de mandar que os vaqueiros montassem a cavalo e gritar para todos da fazenda que os cachorros estavam soltos. Dando ordens e gritando pra todo o pessoal da casa, o Coronel não tirava a vista do campo. Tinha horas que a matilha sumia nas sombras. Tinha horas que voava por cima do serrado e dava saltos. O vulto ora desaparecia ora continuava andando. Só quando apressava os vaqueiros ou gritava ordens pra dentro da casa, que o Coronel perdia de vista a corrida alucinada dos cachorros. Não se lembrava de que tivesse acontecido coisa parecida na fazenda. Tomara que não fosse gente estranha, pessoa desarmada ou viajante desprevenido. Os cavalos também já corriam no rumo do vulto negro. Já ninguém podia distinguir bem os cavalos dos cachorros. A noite também caía misturando todos os negros.


Deve ter sido uma luta dos diabos no escuro, pelo que o Coronel contou: Era só um vulto nas sombras. O vulto era mais negro. Momentos ele pensava que o vulto negro tinha total desaparecido. Mas o negro mesmo era feito de patas e braços, braços-e-pernas, crinas-cabecas, crina-e-cabelos, patas-e-pés, pés-e-patas, gritos-latidos-e-relinchos, som-e-sombra, sombra-e-som muito ao longe na noite mais escura ainda.


O Coronel só veio saber mesmo de todo o acontecimento, quando depositaram o corpo desconjuntado, estraçalhado e ensanguentado de Nego Tinta no terreiro. Será que os cachorros tinham visto mesmo a Matinta-perêra? E o faro? E a voz? E o latido? E o cheiro? Nego Tinta virou mesmo Matinta-perêra? Todos, todos disseram que os cães tinham enlouquecido. Tremiam, tremiam e latiam já em choro de cachorro. Será que viram mesmo alguma assombração no negro? Só se o encante se deu naquela justa hora. Pelo latido, todos disseram que os cachorros enxergaram foi coisa do outro mundo.


E o papagaio? Ara, o papagaio tinha ficado na cesta pendurada no beiral da casa ainda meio vivo. Mas quando o Coronel voltou pra ver de onde partia aquela fala, restava só uma bola de pele roxa e encolhida que ninguém sabia nem onde estavam os zolhos.


Compadre Franquilino foi que depois me contou tudo. O Coronel nunca que se conformou de não ter olhado bem no fundo dos olhos da ave faladora. Diz'que o bico cinza-roxo-meio-verde, tinha ficado muito grande. Muito grande. E o corpo todo, incluindo o pé roxo em forma de garra, ficou mesmo muito gito. Muito gito. Assim sem nenhuma pena, já nem era um papagaio. Coronel reclamava de não ter estudado aquela ave pelos olhos. O que ele encontrou no meio de panos velhos, já era uma pustema só de pele transparente e já sem vida. O homem nunca que se conformou de não ter olhado os zolhos bem no fundo. Pelos olhos, talvez ele pudesse descobrir indícios se era encante ou um grande mistério.


O Coronel que tanto desconfiava daquela fala e daquela estória, sempre que podia, esculhambava a noite escura, que justamente naquela hora, tinha caído de repente, só pra esconder a luta entre o negro e os lobos.


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O PAU MULATO - O CONTO - DO ESCRITOR BENEDICTO MONTEIRO


O PAU MULATO






Será que você nunca teve vontade de sair deste lugar pra viajar pelo mundo?


- Já, seu major, foi numa passação de gado do coronel Quintino, quando ouvi um caboco dizer: É, o negócio é correr terra. Me aproximei dos três vaqueiros que conversavam, e fiquei escutando a lorota do caboco misturada com o pó-to-pó-to das patas dos cavalos na água coberta de capim.



- É, o negócio é correr terra. Eu não quero ficar numa fazenda nem um mês. - disse um deles - Que adianta ficar encurralado numa dessas varjas, que até pra chegar na casa dum vivente, é preciso andar léguas e léguas? E bote mato, e bote água, e bote rio. Quando o gado vai pra terra-firme, o cristão fica nesse oco de mundo: Só ouve o estouro da onça e o grito triste do acauã. O negócio é correr terra, minha gente, e furar mundos e mundos...



- É, e as cabocas ? - disse o outro.



- É, e as cabocas ? - falou Zé do Laço - se a gente ingata num rabo de saia, adeus vaidade, vem a filharada, e pronto: Tudo cercado e amarrado. Rabo de saia, quando pega a gente, é pior, muito pior que espinho-espera-primeiro. Não larga, e quando larga, é tudo arranhado e rasgado: Mulambo de gente.



Aí, desgarrou-se uma rês. Zé do Laço levantou a corda e gritou como um aboio.



- O negócio é correr terra, minha gente.



Logo em seguida saiu outra rês da boiada e eu meti o cavalo em cima. Mas fiquei com aquele grito cantando no ouvido: O negócio é correr terra, minha gente.



Moço como eu era, seu major, disposto pra qualquer trabalho, não podia nunca ficar atado naquele barro visguento nem boiando naquelas águas paradas nos campos do Candiru. Meu pai mesmo já tinha dito: "olha Miguel, se tu não vai querê te aquieta, acho melhó mesmo tu sentá logo praça. Vira logo sordado pra servi à Pátria, no mais". Minha mãe protestava logo e arrumava outro jeito: "acho melhó mesmo, é ele casá com Joana que é louca por ele". Meu pai resmungava: "Quar nada, Joca, Miguel é lá de sentá cabeça pra arranjar mulher. Ele é muito novo, cuida só de andanças por ai". Minha mãe insistia: "Por isso mesmo, Terto, ele arranja mulher, casa, e pronto: vem logo filho e acaba a vadiação de vez". Mas mesmo assim, meu pai se orgulha: "Rapaz bem parecido, vendendo saúde! Quando está pra graça, trabalha que nem tinhoso! Mas o diacho é que ele não pára em lugar nenhum".



Eu era assim mesmo, seu major, não parava: Como hoje, ia numa passação; Amanhã, numa apartação de gado; Depois, numa castração no rodeio. Era convidado pra cobrir barracão, pra puchirum de matança de jacaré, batição de pirarucu, tarrafíação do piracema e até pra pescaria de tartaruga e lavagem de juta. De tudo eu gostava de fazer e aprender : Derruba de mato, batição de juta, caçada de porco brabo na mata e de capivara no igapó.



Mas quando não havia ajuntamento de gente nesses trabalhos de parceria, punha a espingarda na costa e metia a cara no mato pra caçar. Andava nas matas horas e horas. Conhecia pau por pau. Não havia igapó mais intrincado, chavascal mais escondido, restinga mais virgem, onde eu não fosse buscar a minha capivara ou a embiara que os matos sempre guardavam pra mim. Falava com as árvores como velhas conhecidas, depois explicava pró pai: Foi pai, naquele apuizeiro grande lá da restinga do Catauari - o apuizeiro, aquele grande - na entrada do igapó da lagoinha... Não tem aquele chavascal medonho no brejo da mulata? Pois é. Depois de passar aquele taxizeiro torto, anda mais um bocado, e passa no meio do manhuranal: Aí, anda mais um bocado, e atravessa aquela baixa grande do lado do campo. Bem na entrada do igapó, tem um pau mulato. Pois é Iá! - Meu pai que era morador antigo e mateiro afamado, ficava me olhando, me olhando, e muitas vezes não sabia o que eu estava dizendo. Mas meu padrinho Possidônio, esse ficava alegre, e achava muito bom, que eu conhecesse o mato ainda melhor.



Um dia, chegando à tardinha duma caçada, notaram que eu não trazia nada. Meu pai logo perguntou:



- Como é, foi panema? Perdeu a embiara ou a caça te cinzou?



- Hoje eu não quis caçar, estava só olhando o mato.



- O mato? 



- É, o mato. Estava vendo se escolhia uma árvore, um pau bonito que se pareça comigo, pra deixar de recordação.



- Ei, Joca, virou doido o rapaz.



- Ara deixa o pobre, Terto, tu não sabes que ele é assim ...



Eu era assim mesmo, seu major. Não, não era doidícia, não. Eu andava mesmo procurando um pau, que pudesse servir de marco na minha vida. E que ficasse pra pai, mãe, padrinho e namorada, como fiel recordação. Até pensei, em plantar ali mesmo, uma árvore no terreiro. Podia bem ir à cidade, e de lá trazer um filho de mangueira. Não, mangueira, não! Mangueira podia morrer no inverno quando as águas subissem. Minha mãe podia até ficar preocupada, pensando no azar. Ademais, mangueira é fêmea, árvore fêmea. Não podia me representar todo inteiro pela ausência. Planta fina da cidade não servia. Não servia. Tinha que ser mesmo árvore do mato. Um dia pensei que tinha encontrado: O taperebá. Porrete! Taperebazeiro era ótimo. Dava certinho pra plantar no terreiro, bem no canto da casa, de frente pra o rio. E tinha muitas vantagens, seu major. Não precisava de semente, nem de muda, nem de filho: Grelava de estaca. Então, era só encontrar um pau Unheiro na mata, derrubar, cortar todos os galhos, e tirar uma estaca. Era só mesmo tirar uma estaca bem lavrada, do meu jeito e do meu tamanho. Aí eu pensava: Com alguns meses a bicha está grelando. Mas seria mesmo uma estaca bem lavrada? Tornei a pensar... Ou um moirão? Um moirão grosso, retorcido, já meio descascado pelo vento e pelo sol? Não, moirão, não! Só se eu fosse gordo, maduro e casado. Moirão, não. Devia ser uma estaca bem lavrada. Estaca sim, ficava bem sentada e comparada com um rapaz. Mas o diacho, seu major, é que o âmago do taperebá era leitoso e vermelho: Cor de sangue. Aquela estaca assim vermelha, no terreiro, cravada no canto da casa, não podia inspirar boa recordação. - O senhor não acha, seu major? - O senhor não acha? Minha mãe podia notar o leite avermelhado saindo da estaca sangrando. Não, por Deus, que não era boa recordação! Depois, tinha outra inconveniência: Por algum tempo, a estaca enterrada no barro, tinha por força que ficar quase morta. Sem galhos, sem folhas, sem flores, aí que ela parecia um pau qualquer. Os vaqueiros quando passassem, os meus irmãos quando chegassem, iam por força querer amarrar nela os seus cavalos. Iam até impinimar pra amarrar a corda bem pelo lugar do meu peito. Iam entaniçar meus braços, e até que eles, só de malvadeza, podiam arrochar a corda, bem em cima do meu coração. Aí minha mãe tinha, que no íntimo, se sentir revoltada. Na certa ela ia dizer: "não quero que amarrem cavalo nesta estaca, seus tinhosos!" - Ia ser com certeza, pé-de-briga. Depois os meus irmãos iam achar graça. Iam na certa mangar da saudade da velha: "como é mamãe, será que Miguel já grelou?" - Ou então eram muito capaz de dizer: "não deixe cachorro mijar no pé dele". Podiam até recomendar: "olhe, ponha bosta de gado no pé de Miguel, que ele grela" - Não, seu major, não podia ser taperebá. Além dessas inconveniências, o taperebá tinha aquele leite vermelho, que ficava lacrimejando de tempos em tempos.



O senhor pensa que desanimei, seu major? Não. Voltei novamente pra mata, e procurei outra árvore. Uma nova árvore. No terreiro da casa, é que não ficava bem. Ia sair pelo mundo, enfrentar a vida, lutar contra a sorte, sem contar com a proteção nem da mãe nem de pai. Mal comparado, eu podia me meter até num igapó ou num chavascal, o que o senhor acha, seu major?



Passei em revista as árvores pra uma nova escolha. Tinha excluído o Catauari, porque era esgalhado, e se confundia facilmente com outras árvores de seu porte. O taxizeiro, seu major, tomara o senhor veja: É um pau bonito! Esguio e forte. De rara folhagem nos altos galhos. Suas flores quando caem, giram como hélices, milhares de hélices, ao sabor do vento. São as primeiras flores que anunciam a vazante do rio. Mas depois de lembrei de uma triste inconveniência: É um pau muito cheio de formiga. A imbaúba, nem contava. Apesar das folhas, grandes folhas, brancas prateadas dum lado e verde acinzentado do outro. Que brilham, isso eu sei que brilham: Tanto na luz da lua como na luz do sol. O senhor vai ver, seu major, quando o vento bate. Mas imbaúba é o tipo do pau bonito mas ordinário: Galhos finos de sacai, e tronco oco e cheio de nó que nem bambu. Taperebá, eu já tinha decidido: Não servia por causa da casca que lagrimava sangrando. Eras, de pau! Ai, me lembrei do mari-sarro. Taí, o mari-sarro, pensei muitas vezes: Quando floria era a árvore mais bonita! Só que depois, perdia as folhas, caiam as flores e ficavam pendurados só os frutos. Eram frutos negros e retorcidos e ficavam apinhados aos galhos que nem bandos de urubus. Era um pau paresque até que por demais agourento.



Na terra-firme, eu conhecia muitas árvores que bem que podiam ficar como lembrança, só que não grelam naquelas proximidades, onde precisava ficar a minha presença. Eu precisava de uma presença viva, que durasse todo o tempo da minha ausência. A castanheira da várzea, por exemplo, chamada de sapucaia, não era como o castanheiro do Pará. A sapucaia, além de ser baixa, esgalhada e fêmea, ficava sempre com os ouriços pendurados até apodrecer. E quando caíam as pivides, apareciam os buracos, que eram paresque enormes bocas sem dentes gritando pras distâncias dos rios. Já o castanheiro-macho, castanheiro do Pará, esse sim, era o gigante da mata. Tem a copa, acima da mais alta árvore da floresta. Desafia ventos e tempestades. E o que recebe as chuvas mais próximas do céu. Também, quando os seus possantes galhos se abraçam com os ventos do temporal, toda a floresta sente o duelo dos gigantes. Parece até que as árvores vizinhas se abaixam, esperando o resultado da luta entre o pau e o vento, nas alturas do firmamento. É colossal! Lhe juro que é coisa muito terrível de colossal. Agora, quando o bicho-pau vence a luta, que os ventos se libertam dos braços-galhos, então o senhor gosta de ver, a enormidade dos ouriços que se alastram. O castanheiro-homem, esse, ri e acha graça do resultado da briga: Castanha no chão, princípio de colheita, é a safra. É a safra que começa. Mas a floresta estremecida e violentada agita inteira, ramos, galhos, flores e trepadeiras, num grito triunfante que sacode a terra e invade os campos, matos, e rios, por toda a redondeza. Porém, seu major, eu nem lhe conto, quando o vento consegue derrubar o bruto gigante da floresta. As entranhas da terra são viradas do avesso. - Por quê? Porque o próprio peso da enorme copa arranca todas as raízes. No chão, o papouco abre uma cratera, e na mata uma clareira. Confunde-se então seu major, o esmagamento de troncos, imensos troncos, com tenros arbustos, num terrível massacre de flores e frutos. - Não, seu major, o castanheiro não servia, era grande por demais.



Um dia, regressei da mata e comuniquei o meu achado:



- Pai, já escolhi a árvore.



- Que árvore?



- A árvore que vai ficar no meu lugar.



- Conversa fiada, menino, está ficando doido? Foi flechado de bicho do fundo, ou areado do bicho do mato?



Foi a única vez que eu me lembro, que o meu padrinho Possidônio até achou graça. Aí eu criei nova coragem.



- Eu não lhe disse que ia me embora?



- Olha, Joca, a conversa de Miguel, parece até que está apatetado o rapaz...



- Ara deixa, Terto, tu já não sabe que Miguel é assim?



Já tinha dito que ia embora, e só mesmo nesse momento, é que fiquei sabendo o quanto amava a minha mãe. Antes dessa conversa, tinha achado tão fácil sair de casa, correr terra, viajar pelo mundo, até mesmo só para me ver livre das implicâncias do meu padrinho Possidônio, queria porque queria me governar. Mas, nessa hora de partir, seu major, foi que eu senti mesmo a tristeza de sair e o peso da saudade que ia levar.



Felizmente, que eu tinha encontrado a árvore sonhada. Andei tanto pela mata, corrigi restingas, baixas, tesos, igapós, e ali bem pertinho, onde minha mãe nem precisava andar muito, estava o brutelo de pau mulato. Era um filhotão de pau! Um rapaz de pau! Linheiro, aprumado, roxo-moreno-esverdeado, procurando entre os ramos das outras árvores, um caminho mais fácil para o céu.



Lhe juro, que não havia muita diferença entre o meu jeito, a minha cor, o meu porte, e o filhotão de pau mulato. Era uma imagem digna e viva! Uma coisa só. Quando minha mãe sentisse saudade, podia recorrer à lembrança e encontrar de novo o filho representado na mata. Era só ver e olhar, escrito e escarrado o caboco plantado no visgo do barro. Sem pôr e nem tirar.



O pau mulato, o senhor pensa, não tem flor, nem fruto. Mas quando se parte um pedaço, o machado entra na casca fina como em carne de gente: O âmago reparte-se retorcido como feixes de músculos. Mas o mais parecido mesmo é a cor. É uma cor roxa-morena-esverdeada de caboco com impaludismo. Ou então: Roxa-morena-avermelhada de caboco afogueado de sol.



A minha namorada soube logo de toda essa conversa e um dia de repente ela apareceu:



- Credo! D. Joca, que pau Miguel foi escolher.



- Um pau mulato, minha filha! Roxo que nem ele, novo que nem ele. Que Deus não me castigue, mas Miguel é escrito-escarrado aquele pau.



- Pois eu nem sei o que digo, suspirou Joana.



Eu lhe juro, seu major, que eu não contava com a presença de Joana. Tinha procurado esquecer tudo nos últimos dias. Já bastavam os olhos espichados da mamãe, o silêncio de papai, acompanhando os meus movimentos e procurando fazer todas as minhas vontades. Meu padrinho Possidônio não dizia nada, mas era de desconfiar de tamanha proteção.



O que Joana tinha vindo fazer? Implorar mais uma vez que eu ficasse? Chorar na despedida? Recomendar pedindo que voltasse? Pra não entrar noutro assunto, fui logo dizendo:



- Como é, veio ver o pau mulato?



- Tua mãe já me falou...



- Vai, Miguel, mostrar para ela, onde fica o pau que tu escolheste.



Não sei como foi, seu major, mas não esperamos a segunda ordem. Entramos no mato como quem entra em casa. Com poucos metros nos abraçamos, e caminhamos em silêncio numa vereda estreita que ia dar justamente bem em frente da árvore escolhida.



- Está aqui, Joana, o pau mulato - disse pra ela- estancando quase que em riba duma árvore que crescia meio isolada, no meio dum mato cheio de aninga-pará: Tinha montes de cerrado pelos lados e muita folha seca pelo chão.



- Mas ... ainda é um fïlhotão! - falou Joana.



- E eu, o que sou?



- Tu já és homem - respondeu Joana - acariciando bem de leve o tronco da árvore com o rosto e com as mãos.



- É macio, não é? É liso e esguio, não é? Mas não verga! Só cai, decepado pelo machado ou lascado pelo vento.



Pois eu lhe conto uma coisa, seu major, que eu fiz só de malícia: Tirei minha camisa, me abracei com o tronco da árvore e perguntei pra ela:



- E a cor?



- Meu Deus, que coisa!



- Não te disse? É o jeito, a cor e o porte: Tudo igual!



- Igual igual - repetiu Joana - igual igual, mas não adianta nada...



- Por quê? Perguntei.



- Tu vai embora ...



- Mas eu volto.



- Tu arranja outra e fica por lá.



- Tu não quiseste deitar comigo no mato ...



- Se tu fica, eu deito.



Ai eu disse: - Então vamos fazer um trato. Agarrei as mãos dela, e sentamos no chão bem ao pé da dita árvore. Me lembrei logo, que eu bem que podia já ter passado aquela menina nos peitos. Se não fosse essa questão de honra, de casamento, de menoridade, ela já era há muito tempo minha mulher. Com ela, seu major, até que eu sempre tinha tido consciência. Por isso que aquele trato ali, aquela facilidade, aquela manimolência dela nos meus braços, dava até pra desconfiar. Com certeza era mais uma cilada. Podia ser até maior esperteza da minha mãe... Mas dessa vez eu pensei rápido, me lembrei da conversa dos cabocos na passação do gado do coronel Quintino: "Rabo-de-saia é pior que espinho-espera-primeiro. Tá fisgado, rapaz!” Ai, Joana me acordou desses longos pensamentos:



- Que trato, Miguel, já te arrependeste?



- Vamos deixar o nosso amor marcado? Foi o que eu disse só pra desconversar.



- Marcado de quê? De coração flechado neste pau?



- Que coração, Joana? Marcado que eu falo, é com o nosso corpo rolando neste barro. Depois que a gente fizer o amor, neste pedaço de chão, não vai mais nascer nem um pedaço de mato, nem um grelo de planta e nem uma promessa de raiz. Eu acho - eu disse pra ela - que só assim, o pau mulato pode ser uma digna lembrança para todos os juízos.



- Mas tu vai embora e me deixa no ora-veja... Se ao menos esta árvore fosse encantada pra me consolar...



- Vamos, Joana, te resolve.



- Olha, Miguel, eu deixo o meu coração gravado com as minhas unhas na casca deste pau, mas minha honra, eu só te dou se tu fica.



Nós se abraçamos, se beijamos, rolamos por cima de uma porção de cerrado que havia por lá. Joana depois ainda tentou gravar com as próprias unhas, os dois corações entrelaçados. Mas não houve mesmo jeito de ferir a lisa casca do pau. Eu já lhe disse: Pau mulato tem uma casca tão fina, tão fina, que até parece pele de gente. Foi preciso utilizar o canivete bem amolado, pra gravar os corações que Joana tanto queria que ficasse como lembrança. Mesmo gravando eu estava sabendo: que em casca de pau mulato, não há marca que aguente, porque o danado muda de casca que nem cobra.



Eu nem sei como lhe contar uma coisa dessas. Eu só sei lhe dizer, que quando eu comecei a conhecer todo o corpo de Joana, que ela se entregou toda para mim de toda abandonada, foi como se eu entrasse numa mata virgem pela primeira vez pisada pelo homem. Nem vou lhe dizer o que eu fiz com a pobre da caboca, porque nem eu mesmo sei como minhas mãos puderam dar conta de tantos desejos e tantos sentimentos. Mas uma coisa eu lhe garanto, porque já foi muitas vezes confirmada: É que se eu tivesse me atolado naquela ânsia de abandono, eu estava até agora amarrado naqueles cerrados e perdido naquelas matas.



Só quem não falou nada, foi mesmo o meu padrinho Possidônio. Como sinal de aprovação, me deu de presente uma bela faca, metida numa bainha por ele mesmo, só de propósito para minha viagem. Mas foi só mesmo na horinha da saída que ele me entregou com estes dizeres:



- Isto aqui, cabra da peste, é o teu passaporte, o teu salvo conduto e é também a tua passagem de ida e de volta. Esta faca é a tua chave do mundo. Se o mundo se trancar para ti, corta o nó, que a noite sempre tem que escurecer e o dia sempre tem que clarear.



De fato, seu major, estava escrito no meu destino, essa minha volta. Eu mesmo não sei a demora que eu sofri de tantos caminhos. O tempo tinha corrido o tanto que o mato tinha crescido, isto é: O tanto que o mato tinha crescido era o tanto que o tempo tinha passado. Os caminhos e rios subidos e descidos, andados e remados, não tinham marcado calendário na minha mente.



Quando voltei, todo mundo já tinha esquecido o pau mulato. Menos o meu padrinho Possidônio, que continuava com a mania de querer governar o meu destino. Mal deixou arriar a bagagem no chão e logo me inquiriu a respeito:



- Como é cabra da peste, cadê a tua faca? A faca que eu te dei como passaporte de ida e volta? Pois agora vamos visitar a tua lembrança?



- Que lembrança?



- O pau mulato.



- Será que ainda existe?



- Ô sumano, vamos vê. O desengano da vista é furar o zolho.



Será que ainda existe? Eu mesmo me perguntei. Ficou fiel à minha espera? O que podia lembrar agora o pau mulato? Os dois corações entrelaçados... Será que estava no mesmo lugar? Firme? Firme e altaneiro aguardando a minha volta? Que notícias podia me dar um pau mulato? Será que ainda é o meu espelho? Minha imagem? Um pau mulato? Um pau mulato lasca mas não verga! Rápido eu pensei e repensei o pensar.



Mas meu padrinho Possidônio não deixou mais eu falar nem conversar, até quis paresque interromper meus longínquos pensamentos. Ele é que estava mais cuíra de mostrar o pau mulato. Tanto que só faltou me empurrar no rumo do mato. E apesar do tempo que tinha passado, eu encontrei logo o caminho antigo. E só fui mesmo na frente, para ele não dizer e não pensar que estava me governando. Mas eu reconhecia que o mato mesmo ali por perto já tinha mudado. E quando cheguei pelas proximidades, comecei a desconhecer todo o terreno. Aí então eu principiei a falar comigo mesmo. Já estava até desconfiado que não era a mesma restinga do catauarí. Desconhecia quase todo o mato. Pelo mato que tinha crescido eu começava a avaliar também o tempo. O tempo. Tinha vergonha de indagar qualquer coisa pra o meu padrinho Possidônio. Acabei deixando escapar as simples palavras: Te esconjuro terra fofa, cadê as árvores que deixei aqui? Parei, pensei, olhei em redor, e reconheci algumas plantas. Aí eu vi que o terreno era o mesmo... Mas, e o pau mulato? O pau mulato? Meu padrinho Possidônio paresque achava que eu não sabia mais. Tinha um apuizeiro. Tinha um apuizeiro que não tinha mais tamanho, só que paresque ele não era daquele lugar. Também outras árvores tinham crescido por demais. Mas, o pau mulato onde que estava o pau mulato? Procurei por perto, novamente, entre tajás e cipós, ao menos um tronco cortado, uma raiz arrancada, um pedaço de pau lascado, que denunciasse o pau mulato. Meu padrinho Possidônio só olhava, mas eu estava certo, que tinha deixado ali, viçoso e já bem alto um filhotão de pau que era a minha imagem. Será que o apuizeiro tinha tomado conta de tudo? Essa era uma árvore que era uma enormidade. Só as raízes, seu major, eram mais altas que muitas árvores em redor. Cinco homens de mãos dadas e braços abertos - o senhor pensa - não abarcavam aquele tronco desconforme de raízes. Só de me aproximar entrei no meio delas. Aí que eu vi que eram enormes por demais. Meu padrinho Possidônio me olhava só de esguelha As raízes, seu major, pareciam muito mais entrada de caverna. Também eu achava que deviam parecer com um grande polvo virado pau dentro da mata Tive que subir numa delas para alcançar o galho mais próximo. É que aquela árvore quase não tinha tronco. Trepei me agarrando pelos cipós. Já bem do alto, quando me agasalhava numa forquilha dum enorme galho, foi que descobri o enorme do buraco. Sim, seu major, sim senhor, era um buraco. Um buraco que ia desde a copa até no fundo da terra, talvez até por baixo das raízes. Aí que eu vi, que o apuizeiro não é uma árvore conforme, mas sim uma parasita desconforme que se enrustia naquele tecido colossal. Aquilo que eu tinha visto de fora e de baixo, não era um tronco formado de raízes. Parecia mais: Que mil árvores tinham se juntado, se abraçado, e se enrolado num arrocho só. Mas por dentro ficava aquele buraco, onde as cobras, os ratos, os morcegos e os lagartos deviam ter escolhido para morar. Meu padrinho Possidônio só me olhava, e eu tinha até me esquecido que já era tarde. Tarde demais. Tanto que eu tive necessidade de dar uma olhada por dentro do buraco, antes que o sol descambasse de vez. Ai, um reflexo num lispe bateu de repente numa forma roliça que eu jurava que se movia A cor, era duvidosa, seu major, vermelha-roxa-meia esverdeada. Me pus logo de guarda. Podia ser, podia ser uma cobra, um rabo de lagarto, qualquer bicho que logo podia me saltar. Olhei bem, firmei a vista e tomei todo o cuidado. Mas não era cobra não, seu major. Era um galho, um simples galho. Ai eu me aproximei um pouco mais. Afastei os ramos, arranquei os tufos de parasitas, quebrei tranças e cipós. Encontrei aquilo que meu padrinho Possidônio sabia que eu quase adivinhava: O filhotão de pau mulato. Ai que eu olhei firme para o meu padrinho Possidônio. Mas o escuro da mata já não deixava eu ver se os seus olhos já estavam descarregados daquela força de comandar. Não me lembro também se falei alto ou se falei baixo. Nem sei bem se os meus pensamentos chegaram a sair como palavras. Mas, seu major, o que eu pensei ou disse pró pau mulato, é bem difícil de resumir agora porque foi um desabafo. Falei para ele como quem fala para um amigo, para um companheiro e para um irmão: Que foi já então que aconteceu, sumano pau mulato? Será que este traiçoeiro senhor apuí da varja te agarrou no ar? Ou te pegou pelo pé, nascendo do visgo deste barro? Ou foi passarinho, pipira, tem-tem, japiim, canário, maria-preta que cagaram nas tuas folhas a semente da erva maldita? Como já então, sumano pau mulato, pra tu deixar esse danado de apuí entaniçar teu corpo todo com esse poder desconforme de raízes? Nem acaso viste o inxirimento das flores querendo diz’que brincar nos teus cabelos? Ou te atacaram de morte, feito puchirum? Se coliaram vento, céu e chuva, pássaro, folhas e flores, para te amarrar de nó cego, e chupar teu sangue feito sanguessuga? Viste em que deu a gita sementezinha mal a mal caída na bosta do japiim? Olha só, a tua pavulage de pau danisco que lasca mas não verga, querendo ser o pai-dégua da mata! Agora, cadê sustança? Cadê gogó, cadê tutiço, para sair deste buraco? Ou será que te deu a tísica doença dos pobres bichando de repente o teu pulmão? Olha, sumano parceiro pau mulato, agora é que é: A noite chegou para completar a tua triste sina de planta asfixiada.



De fato, seu major, a noite tinha chegado. Arrastando os pés de leve nas folhagens, entrando devagar pelas frestas das matas, apagando o luzimento das águas dos rios, ela tinha chegado para ficar. Tinha coberto tudo com aquela tinta encardida que até parece que vem do fundo da terra na cor do barro. Estava tão escuro, que careceu o meu padrinho Possidônio acender a poronga para me aluminar. Com a luz da lamparina, as imensas raízes jogavam as sombras mais terríveis. E o pau mulato lá dentro do buraco, com certeza já nem podia respirar.



Mas mesmo dentro daquela noite, eu pude ver a grande diferença entre a árvore e o homem, entre a imagem e a pessoa, entre o dia e a noite, e entre a vida e a morte. Não sei se o senhor me entende, seu major, mas eu também compreendi naquela hora, que meu padrinho Possidônio me governava pelo silêncio...

sábado, 20 de novembro de 2010

O PEIXE - CONTO DE BENEDICTO MONTEIRO



Varado da mata, areado do tempo, cansado do corpo, saí no limpozinho do terreiro, já meio zuruó. O sol tinia, sem sombra e sem vento. Batia em cheio. Nem tive tempo de limpar a vista com tamanho luzimento.


A Lambisgóia, que era uma cachorrinha inxirida, já estava por dentro da casa, dando alarme. O latido dela era como quem dizia: Bem que farejei, farejei, acuei, acuei a cotia que estava na comidia da roça... Mas na horinha do tiro mata e queda, o pau de fogo falhou. E aí, foi zapt, zapt, zapt, - a cotia arisca perna-pra-que-te-quer.



A mulher só deu uma espiada pela ilharga do japá e viu logo que eu não tinha trazido nada. Acho que ela nem precisava olhar, porque já conhecia de longe o resultado da caçada. Só pelo latido da cachorra Lambisgóia. Nessas horas, a modo que em vez de latir, ela gemia, arreliada que só. O resto, eu mesmo, chegando assim desajeitado, contava, sem falar. Bastava ela ver que eu vinha segurando aquela espingarda velha, com nojo. O traste tinha falhado mais uma vez: Batido catolé.



Aproveitei o espaço que restava entre a mata e a casa, para respirar bem fundo, enquanto os meninos não chegavam. Pelo rápido olhar da mulher, eu pude logo maginar que o tamanho da fome tinha crescido em casa por demais. Se os pirralhos chegassem para ver o que tinha trazido da caça, a modo que eu era capaz de recuar novamente para dentro do mato. Mas a minha própria fome já era meio desconforme. Eu me lembrava que eu só tinha bebido uma simples xicrinha de café. Ouvi o barulho das crianças meio por perto, numa capoeira rala-rala de manhurana e mata-pasto. Daqui pra de que a pouco, pensei, elas vão chegar perguntando pelo de comer. Lástima de lástima! Quem me encontrou logo na porta da cozinha, foi a mulher. - Como é, homem, nada?
- Nada, mulher, nem inambu. Esta porcaria de arma falhou no primeiro tiro. Agora é preciso consertar.
- E só na cidade....
- É, mas as crianças já devem de estar com muita fome.
- Então vai ver se arranjas um peixe no lago.
- Com esse tempo, tu bem sabes que é impossível.
- Tenta, homem de Deus! Pode ser que apareça qualquer coisa. Até traíra serve, contanto que engane a fome dos pirralhos.



Chamei a cachorrinha, com medo que ela fosse com aquele latido choroso, enredar para criançada que eu tinha chegado de mãos-abanando. Tinha passado a manhã inteira dentro da mata, mas o olhar da mulher, não me dava sossego nem de passar no pote para tirar um gole d' água. Peguei meus utensílios de pesca e saí no rumo do lago.



De cima da ribanceira eu vi logo o tamanho do bruto: Agora sim era um lago! Mas antes já tinha sido um campo. Campo e pasto. Varja. Varja alta. Varja alta e varja baixa entremeada de poços no verão. O sol. Tinindo e tremendo. Vasto-vasto. Lama e charco. Campinarana baita! Tijuco e chavascal. Mas pelo meio, no verão, passava um igarapé. Agora, nem sinal! Agora nem sinal de correnteza indicava o que havia por baixo. As ilhas é que faziam a mata se unir por longe uma linha do horizonte. Nele é que sobravam os sombreados igapós. Agora era a água. Tudo água. Água por baixo e por cima de tudo. Lago-rio-campo alagado. Lago parado, lago manso, lago-lago. Água que se estendia pra-nunca-mais ...



A canoa estava meia escondida do sol, no meio do capim. A cachorrinha parou e deitou na ribanceira, pôs o focinho entre as patas e me olhou desconsolada: Latiu dizendo que nada entendia de pescaria. Deu uns ganidos sem jeito e tornou a cobrir o focinho com as patas depois de escavar, escavar o chão. Ali era o limite do inxirimento. Pra beira d'água, ela só ia arrastada, quando as crianças cismavam de dar banho com sabugo de milho e sabão de cacau.



O lago agora era muito maior do que eu pensava. Desci sem muita fé de conseguir qualquer coisa, porque conforme tinha dito a mulher, o tempo não estava favorável. Sabia muito bem que com aquele tempo e naquela hora, era impossível pescar. Tinha aprendido isso de meu avô, de meu pai e das minhas vivências por todos esses lagos. Mas o diacho é que eu não podia ficar. Não, não podia ficar em casa e suportar o olhar espichado da mulher. Não. Não podia mais nem ouvir o choro sentido das crianças. Se elas chegassem de repente... A fome, a fome se encarregava de marcar o cerco agoniado que amarrava os cinco filhos no cós da minha calça.



Eu levava tudo pra pescar,: espinhel, caniço, arpão e zagaia. Só não levava tarrafa, porque era inverno e ela estava toda esburacada da safra do verão. Enquanto eu ainda estava tirando água da canoa, ouvi os gritos das crianças. Pus as mãos em concha na boca e gritei:



- Mulher, não bate nos pirralhos.



- Então vem dar comida pra eles... - ela gritou.



Como resposta, empurrei a canoa pró meio do lago. Gesto inútil, eu acabava de saber. Onde acharia peixe naquela imensidão? Naquela hora, com aquele sol e agora com aquele vento. Só mesmo muito milagre...



Jesus Cristo tinha feito o milagre da pesca. Mas tinha sido para os seus discípulos, conforme falava frei Daniel em tempo de sermão... Mas já fazia tanto tempo...



Remava ainda no meio do capim que beirava o lago: Canarana, premembeca, murerú, mururé, malícia, sororoca, e arroz-brabo, que ia espaçando, espaçando, espaçando, até encontrar a fundura das águas onde não aparecia mais capim. Maginava a modo de achar peixe fora de hora. Podia até atravessar o lago e esperar embaixo das árvores no meio do igapó. Mas essa somenas travessia levaria horas. Por via das dúvidas, já tinha deixado armado o espinhei. Finquei duas varas no meio do pasto e estiquei a linha dentro d' água. Deixei os anzóis pendurados pro-que-desse-e-viesse da parte dos rios. Abarcava com a vista quase todo o imenso lago. Quanta pescaria já não tinha feito ali. Ainda me lembrava da primeira vez que meu pai consentiu que eu sozinho jogasse a tarrafa: "Olha, rapaz, cuidado com o peso da bicha, não vai cair com ela embolado dentro d'água, j'ouviu?”



Mas naquele tempo, eu não me preocupava de ser arrastado até que fosse pró fundo do maior perau... Já tinha mordido a chumbada nos dentes, arrumado as dobras das malhas no braço direito, e dava o balanço do corpo pra descrever um grande e perfeito círculo na água prateada. Todo o lago era meu naquela madrugada: O cardume de peixe fervilhando na proa, o vento dobrando a canarana de leve, e o clarão boiando de dentro d'água naquela manhã. Pois ainda era noite nas matas ao longe e já era manhã nas águas que luziam e tremeluziam sacudidas pelo vento. O pai e eu. A tarrafa, o cardume, a canoa, a água e o céu. O que importava, era que a tarrafa caísse em cima do cardume em círculo perfeito. Depois, depois tudo podia acontecer, porque eu só concentrava toda a força, todo o vigor, toda a alegria, todo o amor da minha maior dor naquele simples gesto.



Mas agora eu estava só. Completamente só. Não tinha o pai, no leme da canoa, nem a madrugada, nem a mocidade nem o amor... Nem a chumbada ferrada nos meus dentes. Nem a tarrafa dobrada nos meus braços. E nem sequer uma bubulha de peixe boiando pela minha frente. O meu ouvido não escutava o ziziar suave do vento da manhã, nem o cochicho confuso da viração no meio do capim. Em vez disso, o vento duro e quente, trazia ainda o triste som do choro das crianças. Choro triste morrendo muito longe, que – a modo - me acordava do meio daqueles remorsos pensamentos. Tinha pensado nem sei quanto, em pé no meio da canoa. E a canoa meia-parada, mexida somente pelo vento.



Peguei novamente o remo e tomei distância no rumo do meio do lago. Um homem no meio de imenso lago, quando sabe que as matas ao longe não formam nem a beira, sente tristeza de olhar pra linha do horizonte. E ainda por cima, com fome, é coisa muito fácil de desesperar.



Eu já estava disposto a invocar o milagre divino. Havera de começar com São Pedro, que era padroeiro da pesca. Não exigia que aparecesse uma desconforme piracema, porque era inverno e a minha tarrafa tinha ficado esburacada em casa por cima do jirau. Os jaraquis, os aracus, os curimatans, pacus, carás, mapiris e maparás, que desciam em cardumes, deviam de estar nas suas ovas pelos buracos dos matupás. Mas bem que São Pedro podia mandar de lambuja, um tambaqui, uma pirapitinga ou mesmo um bom tucunaré. Se não quisesse mandar pró bico do meu arpão, bem que podia até mandar escolher um anzol do meu espinhei. Apesar da hora, do vento, que já tinha encrespado, e do sol que já estava muito mais vidrado, São Pedro bem que podia encaminhar um desses peixes que comiam nos pastos, para banda da linha esticada por baixo do capim. Eu bem que olhava de vez em quando as duas varas: Se mexessem, era sinal de peixe fisgado, panela cheia, brando olhar da mulher, alegria das crianças e sossego e paz pra mim até na outra hora de comer. Mas apesar do espinhel esticado no pasto, eu trazia armada no ombro a haste do arpão. A qualquer momento um peixe podia boiar. Boiar ali mesmo na minha frente, seria um grande milagre. Mas eu só contava mesmo naquela hora com a ajuda do sobrenatural. 



Rezei a Santo António que era padroeiro da nossa cidade. Finalmente, Santo António tinha o dever de proteger num raio de muitos e muitos quilómetros todos os seus fiéis. O povo falava que esse mesmo santo que era adorado na matriz, tinha se deslocado milagrosamente da beira de um lago bem longe como esse à procura da terra firme de beira de rio. Ele mesmo como Santo sabia o quanto era triste e difícil morar isolado na margem desses lagos, que de repente, ao sabor do Amazonas, viram campos, praias e igapós.



O lago imenso continuava revolto. O vento, mais forte e o sol, mais reverberante. Eu me sentia pequeno e completamente abandonado. Me levantei mais uma vez na canoa e subi na escala das minhas orações: Me agarrei com Nossa Senhora. Nossa Senhora era mãe de Jesus, tinha poderes. Além disso, sabia o que era ter filho chorando com fome... Em pé na canoa, cresci e fortaleci a minha fé. Era a primeira vez que eu fazia um pedido com tanto fervor. Fervor não, angústia, quase desespero. Aí me ajoelhei. Não pra puxar a linha do arpão, ou pra tirar o peixe das malhas da tarrafa. Eu me ajoelhei foi pra rezar. E prostrado, já no meio do lago, no fundo da canoa, implorei o santo milagre da pesca. Não, não queria uma canoa cheia: Bastava um tambaqui. Tentei rezar a Salve-Rainha até "nos mostrai". Quando eu era criança, minha mãe sempre dizia: - Meu filho, reza a Salve-Rainha até "nos mostrai", que tu encontras a caça nas matas e os peixes nos rios, contanto que seja com muita fé. Mas eu nunca tinha experimentado a fé de minha mãe. Aí, me deu de novo aquela cuíra de fé fervente e eu pedi a Deus que me mandasse um peixe. Um peixe que fosse só ao menos pra matar a fome dos pirralhos e aplacar o olhar, o triste e duro olhar da minha mulher. Aí esperei. Longo tempo esperei. O céu, o vento, o sol e a água, estavam todos avessos ao milagre. Foi aí que, depois de sondar o ambiente e sentir aquela ventania quente e exasperante, tive uma esperança que era quase um desespero: Apelei para o Diabo.



- Oh, São Diabo, manda um peixe!



Não só pensei, mas fiquei em pé na canoa e gritei: 



- Oh, São Diabo, manda um peixe!



Quase que escapulo o pelo-amor-de-Deus. Sabia que com o tinhoso não se brinca. E nem se deve falar baixinho conforme se reza aos Santos.



Mal acabei de ouvir o som das minhas próprias palavras, senti que tudo tinha mudado de repente. O vento tinha parado completamente. O sol estava escondido e espalhava uma luz branda e meia morta. A canoa estava totalmente parada e a água luzente e transparente. Senti um terrível calafrio: Todos os meus cabelos se arrepiaram. Na falta de outro jeito, para não cair, me agarrei em guarda na haste do arpão. Sofri a extravagância mais esquisita da minha vida. Fiquei entre o céu e o inferno, entre a crença e a descrença, entre a vida e a morte, entre a minha pessoa e a outra dentro de mim... Fiquei à espera do milagre.



A água estava cada vez mais parada e transparente: Se abria como espelho aos meus olhos, onde eu via o fundo do lago já meio furta-cor. Até onde a vista alcançava, eu via a água verde, água-cinza, água-azul, água-chumbo, água-negra, água-meia-prateada. E as plantas bem no fundo, em mil formas e cores, acenando como braços. Era a beleza do céu ou encanto do inferno?



Morando tanto tempo naquelas bandas, jamais tinha reparado as lindas coisas do fundo daquele lago. Em baixo daquele gigante espelho, descobri então, mil coisas, mil folhas, mil plantas: Capim-à-toa, cipó de lama, folhas de limo, raízes e raízes, tipos de flor, tudo, tudo chamando a gente como mãos e acenando como braços. Era a vida de Deus, ou a morte do Diabo? Encarei a água como um homem que enfrenta o abismo: Pra confirmar o equilíbrio. E vi. Vi, por Deus, que eu vi. Vi surgirem do fundo, bem fundo, do fundo das águas, do meio daquela claridade cristalina, daquela desconforme confusão de cores, umas bolhas que-vinham-que-vinham, que vinham e espocavam como flores. As bolhas que vinham, viravam ondas na superfície. Aí que eu estatelei. Olhei de novo: As plantas se moviam. Atrás das bolhas, como que nascendo da própria água, ou da transformação das cores, surgia um peixe. Um peixe! Um peixe prateado. Meu Deus, que peixe será esse? Pensei: É um tambaqui. Eu juro que é um tambaqui. Mas todo branco? Enorme e desconforme e todo prateado? Meu Deus, meu Deus, que peixe será esse? Assim nadando de prancha mal-a-mal movendo as barbatanas, quase à flor da água espelhando lampejos de prata... Eu então maldei e tive ímpeta vontade: Sacudo o arpão na tua cabeça. Que erre e pegue no espinhaço, eu sei que é tiro e queda e morte certa em cima e no apagar do rastro. E o último arrepio do derradeiro instante, peixe danisco. Fora d'água não serás mais peixe. E sim, bóia, comida das crianças. Será que vale a pena levar pra casa pra matar paresque a fome dos pirralhos? Quem te mandou? Nunca vi tambaqui branco nadando de prancha meio tonteado. Que me conste, não deve ser peixe destas bandas nem vivente terrestre destas paragens. Vieste mandado do Céu ou enviado do Inferno, sadórico emissário?



Espera aí, que acabo já com a tua franca pavulage. Te lasco o arpão em riba desse lombo, que quero ver o estrago, peixe danisco. Tu és cioso ou mal-assombrado? Bem, depois è o fundo da panela caldo grosso, pirão de fubá e pimenta malagueta. Existe a fome das crianças, o olhar duro da mulher e a triste desconfiança, isto eu sei que existe independente de crença. Pimenta e alho, diz'que quebra qualquer encanto. Assim dizem, diz'que. Até de peixe fingindo comida da gente... Não, peixe manhoso, t'esconjuro! Faço pelo sinal-da-cruz três vezes. E te arrenego a cor, perco até o sabor, que a fome é muito mais forte que a fé nestas paragens.



Eu já sentia era o cheiro do peixe na panela, o gosto na boca e a alegria nos olhos das crianças. O peixe nadava quase à flor da água parada e transparente. Nadava ou deslizava. Espalhava lampejos de mil cores.



Arrumei o arpão e marquei bem no meio do lombo. Era bem no meio da cabeça e no fio do espinhaço. Ia arpoar tiro-e-queda no bico de aço. Mas... Uma força de dentro ou de fora de repente relaxou todos os meus músculos e desfez num átimo o mais simples gesto. Aí meu pensamento foi rasgado pelo meio. Parei como a ave que morre voando bem alto. Olhei pró céu e gritei pra o fundo, bem pra o fundo do lago:



- Vai-te, vai-te pró Inferno peixe do Diabo.