quinta-feira, 14 de junho de 2012

Fragmentos do livro autobiográfico TRANSTEMPO


Por isso, vivi toda a minha vida sonhando. Tanto que, quando consegui entrar em contato com a realidade física, orgânica e visível do ser humano, senti as maiores alucina­ções e sofri também as piores frustrações.
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    É muito difícil, ainda hoje, separar os meus sentimen­tos religiosos, políticos e sociais neste meu processo per­manente de dúvida e conhecimento. É muito difícil classificar-me, codificar-me, identificar-me. 

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Foi na prisão que eu encontrei a minha verdadeira li­berdade. Construindo o meu próprio mundo, eu aprendi a me isolar de tudo e de todos. Aprendi a vencer as circuns­tâncias, a me integrar e a me entregar completamente ao meio ambiente. E como já disse e vou dizer muitas vezes, foi escrevendo que eu consegui exercer a minha mais ínti­ma liberdade.
Fiz da minha cela solitária um universo, do qual bani a minha angústia e povoei de todos os meus sonhos. Nele, comecei a criar as muitas paisagens e nele nasceram os meus primeiros personagens. 

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Depois que comecei a escutar o barulho do silêncio, o espaço foi diminuindo, foi diminuindo aquém das medidas físicas daquele cubículo. Achei então a porta de ferro mais agressiva e intransponível. Pensei que ela, só, fecharia to­do o mundo para mim. Barraria todos os caminhos. O chão de cimento liso, no princípio, pareceu-me uma corda bam­ba. Onde eu não sabia se sentava, se deitava ou se ficava de cócoras ou de pé. Lamentei muito não saber ioga. Mas depois, consegui sentar, deitar e dormir. Meu primeiro so­no foi tumultuado porque o som da conversa dos soldados entrava na cela para me acordar. Como eram propositais para me fazer crer que eu seria fuzilado, o espaço da cela e o frio do chão ficaram logo alterados. O tempo também. Já que eu ia morrer de madrugada, ele deixaria de existir como medida para mim.

Mas depois que eu não morri e os dia se passavam, co­mecei a encarar o espaço e o tempo como dimensões gêmeas. Ai o mundo se alargava. O espaço perdeu todos aqueles li­mites de ferro, pedra e cimento. E a imaginação se soltou. Todas as medidas de espaço e tempo não tinham para mim qualquer utilidade. Porque eu estava aprendendo, na práti­ca, que elas só são úteis quando correspondem ao mundo em que o homem vive. 
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Texto do Romance O HOMEM RIO


   ...Depois que me embrenhei na cidade, perdi até a linha da linha-dágua, que era sempre o meu horizonte. A linha dágua, o senhor sabe, era o limite da minha vista e o princípio dos meus sonhos. Nalgumas das minhas caminhadas, eu até conseguia furar essa linha, pra chegar nas beiras das matas. E, enquanto não encontrasse um furo, um igarapé, para andar entre as duas margens, eu sempre ficava areado.
         Mas, havia linhas dáguas que eu nunca tinha ultrapassado. E. por trás dessas linhas ficavam os meus mistérios, e as minhas esperanças. Essas linhas dágua e esses horizontes alimentavam, os meus sonhos. Muito diferente desta cidade grande, onde as margens das ruas são sarjetas, calçadas, casas e edifícios. E onde as águas das chuvas nas ruas, só formam margens paralelas pelas rodas dos carros. Mesmo assim, em alta velocidade, correndo nesses leitos de terra e de asfalto.
    
     O senhor sabe, que houve uma parte da minha vida, como eu já lhe disse, que eu tinha encontrado paresque a terceira margem. Mas até hoje não sei, se foi uma alucinação ou aquele meio afogamento naquela terrível tempestade. Até hoje eu estou em dúvida se foi um encantamento de bicho-do-fundo ou se foi aquele raio, que quase me incendeia todo, e me torna em pedaços. Podia até ser mesmo, uma assombração d’água, daquele enorme e desconforme lago.

Eu sei que eu fiquei alucinado, mas nunca perdi da minha mente a beleza daquela imensa paisagem. Por isso que eu pensei que tinha atingido a terceira margem. Agora eu sei, que não existe a terceira margem. A terceira margem talvez seja o pensamento. Mas no duro, o que existe são outras tantas margens. A cidade grande está me ensinando isso. Em cada praça, em cada esquina de rua, em cada cruzamento, em cada encruzilhada, em cada porta de edifício, em cada entrada de invasão, eu me confronto com outras tantas margens.
         No princípio, pensando que olhando o céu, vendo a lua por cima dos edifícios e o sol nascer ou se pôr por cima das linhas de cimento, eu ainda ia encontrar a grandeza e a beleza do firmamento. Pelo menos, as imensas distâncias, as linhas dágua e as linhas do horizonte, eu achava que eu bem que podia ver, por cima da cidade-grande. Eu achava, que a cidade podia me dar novos sonhos e novas esperanças. 
......

Poema de Benedicto Monteiro - Bandeira Branca - aos 18 anos de idade

Depois que a noite se aquieta sobre a terra
a cidade fica de pés molhados
andando descalça pelo mundo
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e a lua e as estrelas
lá no céu
ficam embaralhadas sobre o asfalto
pondo arte e poesia no tapete do triste vagabundo.

Benedicto Monteiro - Bandeira Branca 
- aos 18 anos de idade

quinta-feira, 5 de abril de 2012

BENEDICTO MONTEIRO


No ultimo dia 16 de março.. navegamos - eu ..meu irmão Benedicto Monteiro Filho- Geraldo Sirotheau e Antonio Carlos Andrade Monteiro - rumo ao Rio Amazonas para realizar o ultimo desejo do escritor Benedicto Monteiro.. saímos da acolhedoraSantarém e cruzamos o encontro das águas. 
Entregá-lo ao Rio Amazonas e deixar que ele corresse por suas tantas veias d'águas.. dentre elas o igarapé Surubiú que banha sua mítica Alenquer.. foi um ato sagrado de profunda reverência ao homem ..ao poeta..ao escritor.. ao político.. um revolucionário de alma libertária e libertadora que lutou a vida inteira por ideais de justiça e liberdade..e que bradou em defesa de sua- nossa amada Amazônia.
Agora o poeta é parte orgânica desse VERDEVAGOMUNDO que cantou em verso e prosa para o mundo todo.. 

Vai Bené... vai correr.. como o rio corre... livre.. e sem desassossego.

TE AMAMOS BENEDICTO!

..TEUS FILHOS....



terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

No dia em que completaria 88 anos, um texto sobre um rio no qual Bené mergulhou.

No dia em que o escritor Benedicto Monteiro estaria completando 88 anos, a escritora Wanda Monteiro (filha de Benedicto) faz um relato sobre Miguel, o personagem que Bené criou de si mesmo.
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"Benedicto criou Miguel para ser
o guardião de sua Palavra-Raiz,
Porta-Voz de seus Verbos,
e o fez personagem de si mesmo:
Uma Alegoria Viva de seu Sonho".




O "O Homem Rio" foi a última e mais dolorosa obra escrita por Benedicto Monteiro, esse livro apresenta a saga de Miguel do Santos Prazeres, na busca de um novo lugar e na busca de respostas para sua visão de mundo. Uma história que demonstra o quão impactante é a descoberta da cidade grande para o homem ribeirinho – é a história de muitos Beneditos contada por Miguel.

Miguel dos Santos Prazeres trata-se, na verdade, do alter-ego de Benedicto Monteiro. Atesto isso pelo que conheço de sua obra e por ter acompanhado de perto grande parte de todo o seu processo de criação literária e produção editorial de sua obra. A gestação de Miguel foi iniciada com o Conto "O Precípicio" - publicado na Revista Norte N° 1, em 1958- e começou a evoluir a partir do livro de contos "Carro dos Milagres".  O dizer de Benedicto Monteiro, no que tange à sua proximidade e cumplicidade com a natureza, e, sobretudo no que diz respeito as suas angústias e inquietações frente às injustiças sociais, à intolerância e ao preconceito por parte das classes dominantes e dominadoras, se faz pela fala de Miguel.

Esse dizer é o que constrói todo o eixo político de sua obra literária. Miguel diz em sua prosa, vestida de poesia e circundada pelo devaneio verde e líquido do caboclo ribeirinho, o que Benedicto Monteiro não pôde dizer na linguagem dos discursos, na retórica de sua oratória, num momento em que lhe foi usurpado o direito de se expressar como cidadão e político. Esse direito lhe foi usurpado pelo Golpe Militar de 1964, nesse momento de sua vida, ele recorreu à literatura para expressar livremente o seu pensamento. E mesmo depois de seu retorno à militância política, quando foi absolvido do processo que foi instaurado pela Justiça Militar, o Miguel dos Santos Prazeres, perfilado em “Verdevagomundo”, "Minossauro", “A Terceira Margem” e em "Aquele Um" e depois em "O Homem Rio", continuou sendo meio e fim de todo o seu ideário e de seu imaginário poético.

Miguel Dos Santos Prazeres, personagem-elo de sua saga amazônica passou a ser o leito fecundo de um rio que Benedicto Monteiro mergulhou e navegou para manter vivo o seu sonho. O personagem serviu para guardar, viva, a voz e o grito contido do jovem político - e para dar ressonância à voz do Poeta que desenhou em prosa e verso sua memória de amor e dor, de vida e de morte, em defesa da Amazônia e dos Amazônidas.  Benedicto criou Miguel para ser o guardião de sua Palavra-Raiz, Porta-Voz de seus Verbos, e o fez personagem de si mesmo: Uma Alegoria Viva de seu Sonho. Da fala de Miguel escorre o dizer do jovem inquieto e inundado de utopias, do poeta libertário e libertador, do político transformador ávido por conquistas e justiças sociais. A linguagem de Miguel é arquitetada pela fala de todos os Benedictos e carrega em si, a síntese de todos eles: do Amazônida que carrega toda a herança memética de uma civilização de gente vivente e movente desse mundo de águas e, de gente que nasce encantada, que vive no espanto, que cresce e morre dentro da natureza sentindo-se parte dela – só parte dela e, nunca, mais do que ela.

Wanda Monteiro

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O SINAL - O CONTO - BENEDICTO MONTEIRO

                   VISTO DE DENTRO DO CARRO
   
         Entro no carro e me sinto parte deste transito. Condiciono a imagem aos limites do aro metálico que cerca o pára-brisa do automóvel. O mostrador, o velocímetro, os atos reflexos do motorista se integram na paisagem como o balançar dos ramos das árvores que passam ou que ficam. Nem percebo o fechar ou abrir das janelas dos edifícios. Sinto a presença e a fuga da cor... Velho trôpego atravessando a rua em lento passo... Criancinha brincando de bola na beira da calçada... Janelas, árvores, vidraças. Cores e sons fogem e se esgarçam.
         No restrito espaço da cabine, sinto a liberdade e a dimensão do movimento: Flutuo no espaço sobre rodas numa atmosfera de sons.
         Numa rua calma, numa estrada deserta, ouço o cantar dos pneus deslizando no asfalto. À medida que o motorista aperta o pé no acelerador e o ponteiro do velocímetro passa dos 100 quilômetros, as árvores e os edifícios se reduzem à espessura linear. Os sons se atrapalham no descompasso da velocidade como se fossem misturados na gravação de uma fita em várias rotações. Sucessivas cenas numa tela incompleta...
Estranho é o mundo visto e ouvido em velocidade. Principalmente, dentro da cabine de um automóvel, no trânsito aberto, correndo nas ruas.
         Quer numa estrada deserta, quer numa rua sossegada, temos um mundo dentro do automóvel. Eu por exemplo estou dentro deste carro, para fazer uma viagem. Já incorporei o pára-brisa ao meu horizonte visual. São meus, também, os movimentos do motorista. O quadro do velocímetro está subconscientemente agasalhado na antecâmara dos meus olhos. A medida da velocidade, a pressão do óleo, a ignição da eletricidade já são parte suplementar do meu coração.
         E olhem! Sou um passageiro qualquer. Eu sinto o trânsito e vivo a rua, embora esteja dentro deste carro apenas para viajar. Notem! Tomei o automóvel a esmo num ponto de praça. Não escolhi nem a cor e nem a marca do veículo. Faço isso mecanicamente quando volto para casa todos os dias. Mas agora, não estou regressando do trabalho. Vou atender a um chamado urgente fora da cidade. Chamado urgente, urgentíssimo!
        
- Entre a vida e a morte... - disse-me o mensageiro - acho que se o senhor demorar qualquer tiquinho, o senhor não chegará nem a tempo, doutor.
        
O que sabe o mensageiro tão jovem, a respeito do tempo que mede a vida e a morte? Não senti, nos seus olhos aflitos, qualquer medida que sugerisse ao menos a quilometragem. A fração de tempo não estava sequer entrevista no brilho ferino de seus olhos. No entanto, foi suficientemente nítido o sentimento de angústia que me transmitiu. E aquela terrível despreocupação... Uns chamam leviandade, outros chamam liberdade. E outros ainda chamam de mocidade. Mas para mim, que tenho um filho nesse tempo, acho um terrível, terrível deslumbramento.
        
- Escuta menino, porque não chamaram a ambulância do Socorro Urgente?
        
- Não, não desta vez não pode haver escândalo. Temos que evitar os "tiras" da polícia.
   
Acho que até o resto da frase, o jovem mensageiro de cabelos louros e compridos utilizou como chave para pôr em movimento a sua lambreta. O forte ronco da descarga, o cantar dos pneus no asfalto, cortaram o diálogo e restabeleceram o silêncio. Se é que se possa chamar de silêncio a zoada da rua.
         Tomei conhecimento da presença humana do motorista, quando ele largou a mão direita do guidom e fez o sinal-da-cruz. Já estou totalmente acostumado, com os atos reflexos que fazem dos pés e das mãos do motorista, peças e acessórios da máquina. Máquina diante do sinal verde: Sinal aberto. Esquerda, direita, em frente. Espaço e asfalto. Sinal de luz. Permanente alternativa controlada apenas pelo freio e pelo acelerador. Esquerda-direita, direita-esquerda: O mundo que fica e que vem no espelho retrovisor. Freios, pneus, derrapam. Vermelho, sinal vermelho: Fechado. Pára. Todos param. Todos os atos reflexos ajustados aos sinais. Sinais e sinais.
         Estranho movimento, esse da mão do motorista, largando o guidom. Nada tem a ver com o trânsito nem com a máquina. O consciente sempre salta da engrenagem: Rasga o silêncio, quebra o ritmo e evita o desastre. O sinal-da-cruz pode referir-se ao tempo ou à paisagem. Pode ser por causa de uma igreja que passa ou simplesmente por causa do inicio da viagem.
         Estou correndo num carro de praça para atender uma jovem acidentada numa piscina fora da cidade. Deve ser numa dessas farras de rapaziada. Imaginem que não sei nem o nome do moço que trouxe o urgente chamado. Sei que tinha os cabelos louros, olhos azuis e camisa vermelha. Era de um vermelho extremamente ferrante. Sei que é colega de meu filho. Sim, colega de meu filho. Mas não posso, não posso descobrir se é colega de clube, vizinho de edifício ou estudante da Universidade. Vejam só como é audaciosa e temerária essa mocidade. E sobretudo, terrivelmente despreocupada.
         Agora, porém, nesta velocidade - mais importante do que os olhos do jovem, homem- quase-criança,  é o sinal. O sinal verde ou vermelho - o amarelo arrancaram porque significava a espera - na nossa frente, no nosso lado, atrás, em toda a rua até onde a vista pode alcançar, por toda a parte, proliferam os sinais. Dos carros que cruzam, dos carros que passam, dos que param, dos que andam. Sinais e sinais.
O motorista faz outra vez o-sinal-da-cruz. Cores, todas as cores em rápidos lampejos, em sucessivas sucessões de cores. Tonalidades de mil cores, movimento das ruas e sons. Às vezes, uma frágil mão feminina na janela do carro dá ênfase à luz do pisca-pisca: Esboça um sinal. Às vezes, o estridente apito de um guarda reforça o aviso dos sinais. O som perdido de música de rádio ligado abre uma fuga... A buzina, mais uma, mais outra... Todos buzinam. Trânsito parado. Há qualquer coisa que não atende à sincronia dos sinais. É difícil avaliar as forças contidas em frente ao sinal vermelho de trânsito. Nos pés, nas mãos, no cérebro, nos olhos, no coração aliviado pela pausa ou torturado pela luz cronométrica, mandam os sinais.  O que dizer dos cavalos-de-força contidos nas capotas multicores? Quarenta, quatrocentos mil cavalos-de-força dos motores: A tensão humana e o pulsar de um coração!  
Um delicado pé feminino neutraliza, com um simples toque na embreagem, força capaz de despedaçar uma vida, derrubar uma parede, quebrar todo o ritmo e vencer distâncias e distâncias...
         Novamente o motorista largou a mão direita do guidom e fez o pelo-sinal-da-cruz. Agora já sei: Toda vez que passamos por uma igreja, ele faz o pelo-sinal: Sinal-da-cruz. Neste instante, ele acaba de benzer-se. Já estamos numa zona de subúrbio, e eu posso ainda observar pela janela a singela capelinha que arrancou do motorista, o mecânico, contrito, devoto e cabalístico sinal.
        
- Doutor, ela é uma linda menina, um broto legal, uma garota checada, não tem passaporte pra morrer de araque. Doutor, ela é-do-saco, não pode se passar pro céu ainda nessa idade.
        
Devia ter perguntado detalhes desse chamado, talvez fosse mesmo um caso de polícia. Parece até que fiquei fascinado. Sei que isso não deve acontecer mais, nem na minha idade e nem na minha profissão. Mas, saí do consultório e entrei no carro sob impulso. Não sei bem se segui o fascínio dos olhos, das palavras, da voz ou da cor daqueles olhos. Agora já nem me lembro se os olhos azuis do jovem louro refletiam angústia ou malícia. Recordo-me sim, que havia em todo ele aquela solene, imatura e terrível despreocupação. Podia ser até que meu filho estivesse lá e fosse com ele esse caso que o jovem louro chamava: de vida ou morte. E se aqueles malditos olhos atrás do azul, entre a zombaria, a angústia e a malícia, quisessem me ludibriar?

- Doutor, o senhor tem filho, sabe, é duro a gente morrer numa farra sem graça.

Vou repassando rapidamente o diálogo e fazendo mil suposições, que entrecortam nos cruzamentos, derrapam nas curvas, param nos sinais, e se interrompem no acionar dos freios e no manejo das embreagens. O ponteiro do velocímetro atinge agora a casa dos oitenta: 80 quilômetros! O motorista faz novamente o pelo-sinal-da-cruz. Não, não foi uma igreja, nem uma capela. Virei-me rapidamente e ainda pude divisar pela janela, a cruz com flores, à margem da estrada, longe, bem longe... Atrás...
         Agora, o ponteiro do velocímetro atinge os CEM: 100 quilômetros. Começo a descobrir nas meias palavras do jovem mensageiro, que há algo terrível atrás desse chamado. Já não é mais angústia que refletia o azul daqueles olhos. O cabelo louro, comprido, escorrido sobre o rosto bronzeado, me dá uma sensação de medo e desconfiança. Começo também a entrever a cínica segurança de que os jovens se armam para enfrentar a perplexidade. Lembro-me, que neste exato momento, não posso saber onde está minha filha de 17 anos. Fico também sem saber o que seria preferível encontrar na piscina entre rapazes: Meu filho quase morto, ou minha filha simplesmente embriagada Por que foi precisamente a mim que me chamaram?
         Tento dizer ao motorista que acelere a marcha. Mas o velocímetro parece que obedece diretamente a transmissão do pensamento. Ouço o cantar dos pneus no asfalto. A paisagem transforma-se num túnel. Não consigo conter a minha angústia e falo ao motorista
        
- Mais depressa.
        
Sinto que a resposta é dada pelo pé comprimindo o acelerador. Atingimos a justa escala do silêncio. O velocímetro oscila lentamente. Pelo espelho retrovisor, como os olhos, o motorista completa o sentido das palavras.
        
- Doutor, a chuva está muito forte, não posso puxar mais, por causa do asfalto.
        
É verdade, só agora me apercebo que está chovendo. Chovendo muito forte: Torrencial. Por causa da chuva, descubro mais dois objetos dentro do carro. O relógio e os limpadores de pára-brisa passam a ter para mim particular importância. Os limpadores cavam dois semicírculos vidrados na chuva. A chuva é pesada e torrencial. Mas o carro corre em velocidade.
         Agora, coberto de chuva, na vertigem da velocidade, eu só tenho olhos para ver os dois semicírculos. Completa-se para mim a visão do túnel onde me meti. Túnel da própria paisagem na chuva em velocidade. Cercam-nos paredes cinzentas da mistura das cores em fuga linear. À medida que aumenta a velocidade, a chuva fecha o túnel. Os semicírculos do pára-brisa brilham, às vezes, como duas metades de sol.
         Agora sei que, com esta chuva, o motorista perdeu a paisagem e possivelmente passará por uma igreja sem fazer o pelo-sinal-da-cruz. Até uma cruz com flores à margem da estrada, ele não pode ver, porque seus olhos se concentram no semicírculo do pára-brisa que abre o caminho na chuva, chuva torrencial. A velocidade agora debaixo da chuva, em cima do asfalto, não permite maior ângulo para a visão.
         Coberto de chuva, barrado pelas linhas dos semicírculos, preocupo-me agora com o ponteiro do velocímetro: 100, 120, 140. Não tenho coragem de dizer ao motorista: - Mais depressa O relógio cresce. Cresce e marca: Quinze para as seis. A noite vai cair. Além da chuva, agora, a noite. Dentro de pouco tempo o motorista estará acendendo os faróis. Já imagino a luz varando a noite. Por enquanto, ainda vê-se com dificuldade o leito da estrada: Dorso negro e cinzento a furar o horizonte. Fora, passa em velocidade a massa cinzenta da paisagem.
O relógio marca agora: Dez minutos para as seis. Assalta-me um pressentimento de que o motorista, apesar da chuva, apesar da velocidade diluída em cinza-escura-chuva-mancha-da-paisagem, ainda vai fazer o pelo-sinal-da-cruz. É o símbolo da hora. Quando o relógio marcar seis em ponto, ele na certa fará o pelo sinal. Deve ser costume: Mecânico, contrito, devoto, cabalístico sinal da cruz. No momento, ele não está olhando para o relógio, e, segundo os meus cálculos, não falta muito tempo para chegar. Suas mãos estão firmes.
Para não pensar nos olhos azuis do jovem quase homem, na menina que tenho que atender quase à morte, no meu filho que possivelmente encontrarei entre esse quase, eu concentro-me, novamente, no relógio. Faltam, agora, apenas três minutos para as seis. Quase seis horas. O velocímetro oscila entre 120 e 140 quilômetros. As mãos do motorista estão firmes no guidom. O carro trepida, a chuva cai, o vento passa... Mas as mãos do motorista estão firmes no guidom.
         Atônito, febril, perplexo, divido a minha atenção entre o velocímetro e o relógio. Sinto quando o ponteiro do velocímetro cai de 140 para 120 quilômetros. O relógio marca seis horas em ponto. Seis horas: Oração. Neste exato momento, o motorista larga a mão direita do guidom e faz o pelo sinal... SINAL DA CRUZ. Fração de segundos num átimo de tempo. Entre a chuva e a paisagem, um simples sinal quebra o ritmo da vida em pleno descompasso. Canta a velocidade. Tenho a exata consciência do desastre. Não vi mais nada. A chuva-cinza-escura... O carro capotou...
  
                        
 VISTO PELO RETROVISOR
   
        
O sinal-da-cruz foi a última lembrança, o último sinal e o derradeiro gesto. Depois a derrapagem, o grito do pneu no asfalto e o salto no escuro para a morte.
                 
- Vinha, sim senhor, com os olhos fixos na estrada. Havia chuva, chuva forte, mas podia muito bem se ver. Pelo menos a estrada, se enxergava.

- Já, sim senhor, já tinha acendido todos os faróis. Se era noite? Noite? Bem, a estrada estava escura, cheia de bruma, a chuva branca, o negro leito molhado deslizava, e eram seis horas.

- Isso mesmo: agora me lembro que foi por causa das seis horas que eu me benzi.
        
- Se me recordo da quilometragem? O passageiro pedia que eu corresse - Corre mais depressa - foi a única coisa que ele disse: - Corre mais depressa!

- A voz do homem era tão súplice e angustiada que troquei o relógio pelo velocímetro. Parece até que troquei os minutos pelos quilômetros... Mas me lembro que foi justamente por causa das seis horas que me benzi.

- Sim, foi o sinal-da-cruz. Sempre foi o meu costume.

- Não, não foi por mal nem descuido. Era sempre o meu costume. Minha mãe sempre recomendava que eu rezasse. Como esqueci as rezas, faço sempre o pelo-sinal-da-cruz. Ela dizia sempre: “Não esquece o sinal-da-cruz, que Deus te acompanhe”.

- Não, não houve excesso, eu juro que o relógio marcava seis horas. Os quilômetros? Faltava pouco para chegar à piscina.

- Sim, senhor, conhecia demais esse caminho. Mas as pessoas sempre eu olhava pelo espelho. O senhor desculpe, mas a gente sempre dizia que retrovisava.
- É, olhava pelo retrovisor. Repartia a vista entre o passageiro e a estrada. Às vezes, dava, sim senhor, pra reconhecer. Conforme a luz, a voz e a pressa. Muitos rostos, eu enxerguei pelo espelho...
        
- Era, sim senhor, um lugar suspeito. Funcionava todas as horas, todos os dias e todas as noites. Ia gente de todos os tipos.

- Era, eu via pelo espelho, olhando para a estrada.

- Sim, até menina eu conduzia.

- Bem, eu nunca perguntava a idade, mas reconhecia pelos olhos.

- Era, elas sempre iam acompanhadas. Os rapazes às vezes, também eram umas crianças.

- Não, eu não tinha nada com os passageiros, apenas fazia o meu serviço.
        
- Nesse dia? Bem, ele entrou meio apressado. Deu o endereço e depois ficou tranquilo.

- Foi, foi quando ele disse corre mais depressa Eu jurava que não era o mesmo homem que tinha entrado antes no meu carro.

- Estava, estava com o rosto completamente transtornado.

- Sim, reconheci pelo espelho, apesar da chuva e da noite. Foi por causa do seu rosto que acho que atolei o pé no acelerador.

- Não, não me lembro, parece mesmo, mas acho que apenas consultei o meu relógio.
        
- Os quilômetros? O ponteiro caminhava para as seis horas, a chuva estava grossa, a luz dos faróis varava a chuva. Foi, sim senhor, foi quando eu me benzi. Parece que arrancaram o guidom das minhas mãos.  Mas parece que foi ontem . . .
         - Ah, o senhor é da polícia? - Foi, foi o rosto mais angustiado que eu já vi.

- Ele está morto? - Não, não, eram seis horas, foi por causa das seis horas que eu me benzi.
        
- Sim, senhor, eu só tenho mãe. O pai eu desconheço. Minha mãe é professora e costureira.  Trabalha em casa.

-  Sim, senhor, sou motorista.

- Minha mãe nunca me disse que meu pai era vivo. - Não, nunca! - Não sei de nada. Ela sempre me recomendava que eu me benzesse. Quando saísse de casa, quando começasse o trabalho, quando iniciasse uma viagem e quando passasse por uma igreja. Quando, às seis horas, o sino batesse, ela sempre dizia que eu me benzesse.
        
- O ponto de praça? Era, ficava bem em frente do edifício.

- Que consultório? - Não, já disse que não conhecia o passageiro. Nem sabia que ele era médico.

- Ele está morto? E o que tem a minha mãe com tudo isso? Mas ela não sai de casa. Leva uma vida de viúva.

- Nunca! Nunca me falou do seu passado. Já disse que meu pai eu não conheço. Ela nunca me disse se ele estava vivo ou morto.

- Não, nunca senti a mínima falta.

- Confesso que não sei. - Alguma semelhança? Que semelhança?

- Reconheço sim, que é o sujeito do retrato. É difícil comparar uma fisionomia, principalmente que é vista pelo retrovisor. - Como posso descobrir uma semelhança? Esse retrato que o senhor me mostra, pra falar verdade, quase não se parece com a fisionomia do passageiro que entrou no automóvel. E se fosse comparar com o homem que falou através do espelho, eu posso até jurar que não era a mesma pessoa, isso importa? O senhor compreende, este retrato é uma fria imagem parada num quadro de uma carteira. É uma figura imóvel atrás de um plástico. Não é a mesma coisa que o rosto vivo de um homem refletido no espelho. Principalmente no espelho de um carro em velocidade.

- Não senhor, não pode ser a mesma coisa que ver a pessoa, a própria pessoa. E pelas costas: surgindo do leito da estrada que fica para trás. Às vezes, espanta porque vem de súbito.

- Não senhor, não me espantei. Disse: que ás vezes espanta quem está com a atenção pregada no asfalto, na curva, na estrada, e de repente a voz soa por trás e o rosto surge no espelho pela frente.
   
- Comigo? Não senhor, não vi nenhuma semelhança. E eu estava bem, guiava tranquilamente, quando ele pediu que eu corresse: " Corre mais depressa!".

- Não vi nenhuma semelhança.

- Comigo? Este retrato? Ora, quase não sei como me pareço.
- Minha mãe? Não, nunca ela me disse que eu me parecia com meu pai. Aliás, ela nunca me falou nisso.

- Foi, sim senhor, foi só o que ele disse: “Corre mais depressa!”.  Agora me recordo bem - o senhor desculpe - parece que respondi: É preciso cuidado com o asfalto.

- Sim, porque o asfalto estava liso e molhado. A chuva era grossa Não, não houve o mínimo descuido. Foi quando eu fiz o pelo-sinal, pelo-sinal-da-cruz, depois, depois não sei mais nada...
                           
   
                                    
VISTO PELA POLÍCIA
   
   
         - Não, não minha senhora, como posso arrancar essas coisas do rapaz?  Está certo que a polícia já verificou essa questão de paternidade. Parece mesmo que o motorista era filho natural da vítima.  

- Sim, muito bem, investigamos a respeito do escândalo. Houve realmente queixa-crime contra o seu marido por sedução. Mas foi há tantos anos. Vinte e cinco anos, minha senhora, é quase uma existência Mas não houve qualquer processo.

- Realmente se parecem: O rapaz e a vítima.

- Pelo retrato, é claro, que agora o rosto está irreconhecível.

- Mas a Polícia, ao que me conste, parece que não tomou conhecimento dessas ameaças.
        
- Diga à sua constituinte, Doutor, que a mãe do moço, desse motorista, negou terminantemente que tenha educado o filho com ódio do pai. E é professora de vida recatada e modesta.

- Não senhor, não tem qualquer aparência.

- Sim, investigamos tudo. Este último, foi o quinto interrogatório.

- Desde que acordou no Socorro Urgente, depois do desastre, ninguém falou com ele.

– Ninguém! Absolutamente incomunicável.

- É claro que tem procurado, afinal ela é mãe do rapaz.

- Sim, único filho. E o único homem da casa.

– Já! Sim senhor! Já fizemos tudo. Ele não diz mais nada...
        
_ Essa é outra versão, Doutor, mas está sendo apurada em inquérito suplementar. É, porque tem menores. A Polícia não apurou até agora a menor ligação do motorista com o grupo de rapazes da piscina.
- A moça? Estava completamente nua e desmaiada, quase morta. Até agora não se sabe, pelo menos eu ainda não vi o laudo, para dizer que seja apenas coma alcoólica.

- Os rapazes evadiram-se, mas há inúmeros suspeitos.
        
- Não, não, isso que é pior não havia nenhum vigia na piscina. O proprietário parece que ignora completamente o ocorrido. Há, sim, fortes indícios. Como já disse: Inúmeros suspeitos.

- Estava sim senhor, muito próximo. Nós medimos: Não tem quinhentos metros para o local do desastre.
        
- Como se explica a velocidade? Bem, o senhor viu e leu todos os depoimentos. Foi a única coisa que ele disse: - "Corre mais depressa". - Está certo, quem diz é o rapaz... Mas, nós não temos até agora outra testemunha...
        
- Doutor, por obséquio, peça à sua constituinte que aguarde lá fora. Ela está nervosa, eu compreendo, mas a presença dela dificulta certas formalidades.
        
- Não, infelizmente não temos elementos para provar nada. Até agora tudo indica que foi um simples acidente. Bem, ela já deu o seu depoimento. Todas as investigações estão sendo feitas.
        
- Sim senhor, haverá perícia. O local continua interditado. Felizmente que não criou problemas de transito porque o carro está muito distante da pista. Foi uma capotagem violenta. O motorista salvou-se milagrosamente. Várias fraturas, mas está completamente fora de perigo.

- Creio que só o Doutor, quando puder falar, poderá nos dar algum elemento que esclareça o caso da piscina. Simultâneo e próximo.

– Por que não ouvimos, agora, os filhos da vítima? – Não, não senhor, não é nenhum absurdo. Compreendo que a sua constituinte queria ocultar tudo dos filhos que ela acha que são umas crianças. Mas, a verdade é que, embora sendo menores, podem e devem ser tratados como adultos. Todos os suspeitos que ouvimos são “gente de bem”. Isso dificulta todas as perguntas. Respondem cinicamente, que fazem inveja a qualquer marginal.

- Claro, sempre com muita mais inteligência. Olhe que eu tenho muitos anos na Polícia, lidando com todos os tipos mais depravados e mais pervertidos – submundo como dizem os jornais – mas ainda não tinha encontrado esse tipo de gente que encara a Polícia com a maior naturalidade. Os olhos desses jovens, Doutor, espantam! Seus gestos desconcertam, suas palavras confundem. E depois, apresentam um alheamento tão completo, que invalidam todos os nossos métodos. No princípio, quando eu vi a luz brilhante dos olhos deles, pensei que estavam dopados. Esperei então que passassem de tranquilizantes, estimulantes ou entorpecentes. Confesso que esperava encontrar uns molambos, completamente deprimidos como ficam os viciados em drogas, o senhor sabe, uns molambos. Mas, foi para mim a maior surpresa: Me encararam com os olhos mais desconcertantes. Um brilho diferente.

– Não Doutor, não é apenas aquele lampejo da juventude... Inteiramente alheios, respondiam a todas as perguntas. Acho, Doutor, que só temos uma saída: É aguardar o depoimento da vítima. Finalmente, ele é um homem de responsabilidade.

– Claro, está claro que logo que permitam os conselhos médicos. Mas, é absolutamente indispensável! Isto é. Absolutamente indispensável! O que ele disser pode alterar todas as hipóteses.

– Mas Doutor, eu não compreendo, o depoimento da vítima não pode ser adiado e nem dispensado, sob pena de perdermos o fio da meada. Sim, no próprio interesse da investigação. Depois, não culpem a Polícia. Finalmente, será que a vítima nem pode ser vista.

– Os médicos. Sim, os médicos. O hospital, o tratamento, a família, a situação melindrosa do paciente.

– E a Polícia? Querem que se arranque a bofetes a versão de um monstruoso crime?  Não, Doutor, sem o depoimento da vítima, não podemos dar mais um só passo.

– Como? Vai demorar muito tempo?

- Os médicos, sim eu sei, os médicos... Mas, não pode ser indefinidamente...

– Perdeu a fala? Não, Doutor, não me diga uma coisa desta.

– Ele está louco?

– Completamente louco?

- Não, Doutor, não me diga uma coisa destas...