terça-feira, 16 de novembro de 2010

ENTREVISTA PUBLICADA NA REVISTA CAROS AMIGOS PARA MARIO DURMOND

Benedicto Monteiro e o homem do equador
por Mario Drumond


"Os políticos que tiveram uma carreira como a minha ficaram
mais ricos. Eu fiquei mais pobre." O escritor paraense Benedicto
Monteiro nos diz isto com uma ponta de vaidade. Não a vaidade
dos ingênuos ou idealistas, mas a dos estóicos conscientes de
que as riquezas verdadeiras não se fazem com dinheiro. Homem
do povo, getulista histórico, amigo de Jango, Brizola e Darcy
Ribeiro, deputado estadual no Pará, cassado, caçado e preso em
1964, anistiado e eleito duas vezes deputado federal, Procurador
Geral e Secretário de Estado do Pará, o filho da cidade de
Alenquer, PA, nascido e criado às margens do Amazonas,
conquistou a literatura, a poesia, a música e a filosofia do seu
povo. É autor de romances, poemas, músicas, e muitos livros
publicados, entre os quais a sua tetralogia amazônica que
imortaliza o personagem Miguel, o mestiço que a pena de Benedicto fez ícone da nacionalidade, elevando-o à
galeria maior da nossa representação literária, onde já figuram o sertanejo de Euclides da Cunha, o jeca de
Monteiro Lobato e o gaúcho cantado nos ditirambos dos pampas. Este repórter leu a obra e, na sua modesta
opinião, o mestiço Miguel não fica em desvantagem a nenhum destes célebres patrícios. Como eles, se integra
com tal perfeição à "teia da vida", que seu espírito, pleno de resistência e liberdade, Fritjof Capra identificaria
como um condutor do "ponto de mutação". Nele, a síntese amazônica, fundamental ao homem brasileiro, vem
tornar completo o "homem do equador", anunciado pelo profeta Oswald de Andrade. Benedicto conquistou
também a admiração incondicional dos seus (filhas, genros, netos e bisnetos), e o repórter pôde senti-la vibrar
ao entrevistá-lo na casa de uma das quatro filhas, em Niterói, RJ, sem poder disfarçar a vergonhosa ignorância
de só então conhecer este jovem sábio de 81 anos e a sua obra imortal, toda ela um magnificat ao seu povo, à
sua terra e ao Brasil, que todos os brasileiros devemos conhecer.



Benedicto, a Amazônia ainda é nossa?

Eu diria que politicamente, o território como é visto no mapa do Brasil, ela é nossa, ainda. Mas as influências
que vem sofrendo, em especial as econômicas, sejam estrangeiras ou do sul do país, são sempre a serviço de
interesses de fora. Se olharmos em profundidade, até as grandes conquistas culturais e científicas que tivemos
ao longo da história, como o Museu Emílio Goeldi e outros museus, a Embrapa, o Instituto Evandro Chagas,
o Enaea e muitos outros centros de pesquisas, que hoje detém um acervo de conhecimento fundamental para
Amazônia, não estão sequer sendo levados em consideração. Isto porque a Amazônia é, para as elites
mundiais e nacionais, apenas um depósito de riquezas estratégicas.


Os poderes estaduais, como os do Pará e Amazonas, exercem algum poder real sobre seus territórios?

Em 1964 , logo após o golpe, só o governo do estado do Pará teve subtraído cerca de 75% do seu território.
75%! Todo este território passou ao governo federal, e era administrado por órgãos da Segurança Nacional.
Em recente entrevista, o diretor do ITERPA revelou que, nestas terras, há cerca de 50 mil títulos de
propriedade fraudados. 50 mil! Fora as que os grileiros ocupam realmente.


E o que é feito destas terras? O governo as entregou a estrangeiros ou a testas de ferro?


É uma caixa preta, ninguém sabe nada. Mas, para mim, a questão extrapola essa dúvida. Mais importante é a
riqueza mineral da Amazônia, a região mais rica do mundo em minério, qualquer minério... Você fala em
ouro, ferro, manganês, cobre, níquel , enfim, tudo o que é minério, lá existe em maior quantidade que em
qualquer outro lugar. Isso estava sob o controle da Vale do Rio Doce, que era uma estatal, mas o governo
FHC praticamente doou-a ao estrangeiro, entregando-a por preço insignificante, que não pagaria nem a área
de terra (cerca de 400 mil hectares) que ela ocupava no Pará.
Ao que parece, hoje, quase tudo lá pertence a estrangeiros...
Olha, antigamente quase tudo era inglês, as companhias de eletricidade, de trens, de bondes, de abastecimento
de água, etc. Veio o governo de Getúlio Vargas e estatizou tudo, passou a ser tudo nosso. Agora devolveram
(deram) de novo para eles, ou melhor, para os capitais estrangeiros, que nem sabemos mais de onde vêm.

E essa história, que vez ou outra surge na mídia, de que, nos mapas europeus e dos Estados Unidos, a
Amazônia foi subtraída ao Brasil? É verdade?


Eu ouvi depoimentos de diversas pessoas que vêm do exterior, em quem eu acredito, e me dizem que, no
ensino básico das escolas européias e norte-americanas, a Amazônia já está sendo apresentada aos alunos
como patrimônio da humanidade, e não como pertencente ao estado brasileiro.


O que vem a ser este patrimônio da humanidade? Será que fazemos parte dessa humanidade?

Nós não sabemos. Com certeza, não fazemos parte dessa humanidade. Da mesma forma como nossos irmãos
indígenas na época da colonização, não eram nem considerados pessoas.
Então a realidade é a seguinte: os governos estaduais não tem poder sobre os territórios amazônicos, o
governo federal também não... Os tais mapas de lá estariam corretos?
Só para te dar uma idéia, citando só dois exemplos; todo o ferro de Carajás, é exportado e o alumínio que é
produzido no Pará é dos japoneses.


E o povo paraense, como fica diante dessa realidade?


O povo, infelizmente não sabe de nada disso, até porque não tem acesso a nenhuma informação do seu
próprio Estado, nem da realidade amazônica. E isto não fica só, no que chamamos de "povo". Nem as elites,
inclusive as políticas, nada sabem, nem querem saber do Pará. Se você, hoje, questionar um deputado da
nossa Assembléia sobre estes problemas, ele não vai saber te responder nada.


De fato, já vi gente que se diz bem informada afirmar que temos de entregar nossas riquezas aos
estrangeiros porque não temos competência nem ciência para explorá-las. Isso acontece também na
Amazônia?



É claro. Veja o exemplo da zona franca de Manaus. Para montar as indústrias de lá eles partiram do princípio
que deviam chamar empresas estrangeiras, pois só elas saberiam industrializar a região amazônica. E o que os
estrangeiros fizeram foi maquiar fábricas para trazer seus produtos e vendê-los aqui sem pagar alfândega.
Hoje isto já mudou, existe mesmo um parque industrial. Mas se você for ver quem trabalha lá, são, todos,
brasileiros. Manaus tornou-se uma cidade grande porque o povo veio do interior para trabalhar lá. Para mim,
não deixa de ser uma demonstração de que nosso povo sabe fazer as coisas, quando tem chance. Embora o
interior tenha ficado despovoado com esse grande êxodo rural daquele Estado.


Você vê alguma saída? Alguma idéia de como escaparmos da situação de colônia e de dependência?


Olha, diante da situação dos poderes no Brasil, todos corroídos, o executivo, o legislativo, o judiciário, e em
todos os níveis, federal, estadual, municipal, quer dizer, o governo brasileiro não tem condições de resolver
nem seus problemas internos. Eu não vejo saída. Com o nosso velho aparato de Estado, dominado por uma
política econômica que privilegia o sistema financeiro, nós no Brasil, não podemos fazer nada pela Amazônia
brasileira. Nem mesmo preservá-la.

Nem o governo federal, que concentra todo o poder de decisão, teria condições de dar uma solução?


Teria, se seus ocupantes soubessem o que é a Amazônia, mas não sabem, nem querem saber. E isto eu posso
dizer até de funcionários que atuam lá. Porque, se soubessem o que ela significa em termos econômicos para
o Brasil, eles se preocupariam muito mais com ela. É lá que residem as soluções para a economia nacional.
Existe uma obra importante, do Prof. Samuel Benchimol, que trata justamente disso. Ele demonstra com
clareza que, se a Amazônia fosse aproveitada lucidamente pelo Brasil, nós já teríamos todas as dívidas pagas,
externas e internas, e com folga. Mas ninguém, em esfera alguma de poder, quer saber de estudar a Amazônia,
de conhecer a fundo a região. No meu caso, foi diferente. Talvez por ser escritor e ter estudado o homem da
Amazônia, pois eu estudei a Amazônia a partir do homem que vive lá, eu me tornei o que chamam agora
"ecologista". Minha obra ficcional é, por si, um manifesto ecológico, mas tratando o homem como parte da
natureza e não como um perigo para ela. Eu creio que a única maneira de salvar o Brasil, de salvar a
Amazônia, é a alfabetização ecológica.
Fritjof Capra, também bate muito na tecla da alfabetização. Na entrevista com ele percebi que há
grandes lacunas no conhecimento do Brasil e da Amazônia, em nós mesmos, e até em pessoas como ele.


Você acha que essa nossa ignorância é fomentada pelos que querem nos tomar a Amazônia?

Eu não acho, eu tenho certeza. Já o papel da mídia, a mídia internacional, comandada, sabemos por quem,
está jogando, não só no Brasil, mas em todo o mundo, com a divisão entre o que eu chamo de “ecologia
profunda” e a “ecologia superficial”. Eles estão dando toda a ênfase, e botando muito dinheiro, na “ecologia
superficial”, que vê o homem como preservador, conservador ou destruidor, mas sempre fora da natureza. Até
o nosso genial Euclides da Cunha viu o homem como um intruso na Amazônia! Esses ecologistas superficiais
estariam adaptando essa idéia. Com isso, querem que as pessoas se preocupem apenas com a preservação das
riquezas.

Para quê? Para servir às estratégias dos países hegemônicos, e não às nossas.

Esta citação de Euclides da Cunha, eu não a vejo como uma visão negativa da presença do homem na
Amazônia, mas, sim, como uma verdade que ele constatava a partir da imagem que ele criou de ser a
Amazônia "um capítulo inacabado do Gênesis". O que havia era um preconceito da época e não do
escritor. Que, aliás, deveria estar derrubado com de fato foi.
Sim, eu sei. Concordo com você. Era um preconceito da época.
Em 1982, eu fiz uma entrevista com Luis Carlos Prestes e ele me disse algo semelhante. Mas Prestes
concordava que seria o sertanejo retratado por Euclides que iria, no futuro, defender o Brasil contra o
invasor. E ele incluía a Amazônia na cobiça do invasor.
Concordo plenamente com Prestes e com Euclides. Sim, existe uma resistência na Amazônia, inclusive com a
participação do sertanejo. Na época em que Euclides foi lá havia cerca de quatro milhões de habitantes
indígenas na Amazônia que, de lá para cá, foram dizimados, um verdadeiro genocídio. Isto significa que
houve resistência, uma resistência que ainda persiste no mestiço, que miscigenou também com o índio, e se
fez seu herdeiro legítimo. É ele que está lá, a postos, pronto para enfrentar o invasor. O grande problema são
as elites, e quando digo elites, não me refiro apenas às elites sociais, me refiro às elites políticas, dos
trabalhadores, dos empresários; são elas que têm prejudicado economicamente o Brasil.

Essa postura francamente entreguista das elites teria origens no udenismo pós-Getúlio?

Eu não diria isto em relação à Amazônia. No Pará, p. ex., nós não tivemos esse udenismo exacerbado do sul.
Existiu a UDN, o partido, alguns políticos udenistas, mas não eram como os daqui. Agora mesmo, o atual
governador do Pará fez uma coisa importantíssima. Ele chamou todos os grupos folclóricos do Pará para um
trabalho de preservação da música de lá, que é riquíssima. Nenhum estado, nenhum país do mundo, possui a
quantidade de ritmos e formas musicais que existem no Pará. E isto tudo estava se perdendo, quer dizer, nós
temos de concordar que é uma iniciativa bem pouco udenista...

E ele é do PSDB!
Quer dizer que ainda sobrevive o espírito nacionalista no Pará?


Existe, ainda está vivo lá. A única forma de resistência que pode prosperar no Brasil é o nacionalismo. E não
é à toa que ele existe no Pará. Sempre existiu. Nós sempre fomos muito ligados a Portugal, a primeira nação
desbravadora do mundo, e, portanto, o primeiro nacionalismo. Aliás, no início, o estado do Pará foi ligado
diretamente a Portugal, e não ao Brasil. Custaram a entender que o Pará estava no Brasil. A Cabanagem, p.
ex., foi uma revolução, nacionalista, nativista e patriótica, e acabou sendo esmagada por autoridades
portuguesas, já na Regência Brasileira. Como ainda hoje, as autoridades federais ainda não sabem que o Pará
é um membro da República Federativa do Brasil.

E quanto ao trabalhismo getulista? Foi forte no Pará, nos sindicatos e entre os trabalhadores?

Sim, aconteceu, mas de forma precária. Nós não tínhamos vocação industrial, o Pará era um estado agrícola,
uma realidade fluvial, um povo ligado à terra e aos rios. Só agora temos Carajás e outras indústrias
transformadoras. Na época houve muito peleguismo, mas também teve gente séria e bem posicionada em
alguns sindicatos.

Você acha que a Amazônia poderia ter vocação industrial?

Olha, a Amazônia pode ser tudo o que quiser. É um mundo ainda por ser estudado e conquistado. O que eu
acho um absurdo é gente daqui do sul que vai lá e volta dizendo que estão queimando tudo, acabando com as
florestas, aquela coisa. Não sabem nada da Amazônia, e saem falando como grandes autoridades. O que há de
verdade nisto, acontece de Marabá para baixo. Por quê? Porque aquelas terras foram distribuídas pelo INCRA
e pelo GETAT para empresários de multinacionais e gente do sul. Se você for lá, vai ver que é raro encontrar
um paraense, só gente de fora. Aquelas terras nunca foram queimadas por paraenses.

E as estão queimando para quê?

Soja e gado. Hoje o Pará está entre os maiores produtores de gado. Mas o que devasta a Amazônia é a
extração irracional de madeira.


Mas o povo do Pará não se beneficia disso?


Não, nem sabe que tem essa produção lá. E o governo do Pará só conhece o imposto da madeira que não é
contrabandeada. As madeiras que vão pelas estradas e pelos rios, sem fiscalização, como é proibida a sua
extração, ficam sem fazer parte da nossa produção.


Existe miséria no Pará?


Igual à daqui, não. Porque a maioria das pessoas de lá que vivem na faixa de pobreza, vivem nas cidades mas
são ligadas ao interior. E fazem intercâmbio de mercadorias para vender. Há também a economia informal,
que é forte no Pará. Há desemprego, muito desemprego, gente do interior, que não faz nada quando está em
Belém, não há trabalho para eles. A única fonte de emprego lá é a construção civil.
Que dá muito movimento...
Lá, não.


Por que não?

É uma coisa meio misteriosa. São grupos de construtoras que vão lá, constróem prédios enormes, de 30 ou
mais andares, que nada têm a ver com a realidade local. E deixam aquilo pronto, vazio, mas tudo vendido. Eu
pergunto, de onde vem esse dinheiro? Para onde vai?
Lavagem de dinheiro de corrupção e tráfico de drogas?

É você que está dizendo...

Há muita corrupção no Pará?


Agora, eu diria que diminuiu, já houve mais. Mas na Amazônia a corrupção não chega a ser igual a daqui, é
menor. Alguma corrupção sempre há, é inevitável. De repente, um simples vereador aparece milionário...


Você que vem da velha política, acredita que sempre foi assim?

Não, de jeito nenhum. Claro, sempre houve manipulação de interesses, é natural. Mas hoje em dia o
candidato, já pensa numa prefeitura como um bem pertencente ao prefeito que ganhou a eleição, para
usufruto de sua família e dos seus mais íntimos amigos. A cidade que se dane. E certos deputados dão o
exemplo. Assim já é demais!

E os municípios de lá devem ser enormes, mas é tudo federal por causa do tal decreto...

Não, isto já mudou. O decreto era um absurdo, foram desapropriados 100 km de cada lado das estradas
federais existentes, em projeto ou por projetar. Então, era tudo! Eu vejo agora, que o intuito dos governos
militares era assegurar uma anti-reforma agrária nas terras da Amazônia. Porém, quanto ao absurdo dos 100
km, penso que foi erro datilográfico ou loucura dos que redigiram o Decreto-Lei 1.164. O certo é que o
decreto serviu a muitas arbitrariedades do INCRA, do GETAT e do GEBAM, que ficaram com o domínio e a
distribuição de 75% das terras do Pará. Depois, foi revogado. Só que enquanto vigorou colocaram lá quem
quiseram, sem o governo do Pará tomar conhecimento.


Existe algum dado sobre a propriedade privada no Pará, hoje? Algum levantamento oficial, de
universidades ou coisa que o valha? Em mãos de quem elas estão?


Com informações que possam ser acessadas, não. Grandes propriedades privadas de paraenses no Pará, hoje,
são muito poucas, a não ser certos supermercados. Não há mais uma grande empresa de paraenses. São todas
estrangeiras, japonesas, européias, norte-americanas, do sul, do nordeste...
Pedro Porfírio, da Tribuna da Imprensa, publicou relatos de uma viagem que fez à Rondônia onde
grandes extensões de terras estão ocupadas por estrangeiros, ostentando bandeiras de outras nações.


Nelas não se permitem a entrada ou a passagem de brasileiros. Isto acontece também no Pará?

Não. No Pará, a dominação ainda está no estágio da dominação econômica. Ainda é mantida a fachada de
estado brasileiro, apesar de que é cada vez mais fachada e menos Brasil.

Onde você acha que isto vai acabar? Teríamos condições de reverter essa situação só com a política?


Com esta política que está aí, de forma alguma.


Qual a sua opinião sobre Marina da Silva?

Não sei. Tenho mais de cinqüenta anos de lutas em defesa da Amazônia e não posso dizer que a conheço. Mas
mesmo sendo ela voltada para a nossa região, o seu Ministério não têm as mínimas condições para tomar
contato com a realidade da Amazônia de hoje. A maioria desse pessoal conhece a Amazônia de avião. E não é
só a ministra. Eu não teria um nome do poder político atual, para substituí-la. Para não tomar conhecimento
da corrupção na Sudam, simplesmente a fecharam, como fecharam o BNH. E em dois anos de governo, nada
fizeram pela Amazônia.


Uma solução mais guerrilheira, do tipo Marcello Guimarães e as micro-destilarias, poderia ser um
caminho também para a Amazônia?


Não só para a Amazônia, para todo o país. O caminho sempre será o das micro-soluções. A Amazônia só tem
este caminho. Quando você for lá, eu posso lhe mostrar, p. ex., o artesanato. Você vai ficar encantado com o
que aquele pessoal faz com as coisas de lá. Tudo que a natureza dá, eles transformam. Espinha de peixe,
vegetais, minerais, é extraordinário. Eu advogo a idéia de que deveríamos ter uma legislação ecológica que
considerasse o homem como parte da natureza, dentro dela, e não fora dela. Aí, sim, o povo iria se beneficiar
e teríamos, enfim, o tal "desenvolvimento sustentável". Eles falam muito em desenvolvimento sustentável,
mas não sabem o que é. Desenvolvimento sustentável só pode vir pelas micro-soluções. Considere a nossa
experiência com o álcool. Tinha tudo para dar certo, mas optaram pela produção em latifúndios. Nós tivemos
até um exemplo semelhante ao de Marcello na Amazônia. Na década de 1950, nas margens do Tocantins,
pequenos proprietários começaram a plantar cana e chegaram a fazer renome com mais de vinte marcas de
boas cachaças. Hoje, isso tudo acabou porque o poder econômico local trocou a cana pelo café, como produto
de latifúndio e facilitador do contrabando na região. Levavam café e traziam contrabando. Belém chegou a ser
a cidade que mais tinha carros “importados” no Brasil. Atualmente no Pará não se faz cachaça, só existem as
industrializadas em São Paulo, para comprar. Nada pode ser resolvido em qualquer lugar do mundo com
latifúndios, muito menos no Brasil, e menos ainda na Amazônia.


Os governos do Pará nunca pensaram nas micro-soluções?


Nunca. Nem governos municipais, nem estaduais, nem o governo federal. Os sucessivos governos que
tivemos só estimularam os latifúndios. E depois vêm falar de desenvolvimento sustentável. Ora... O que falta
é interesse do governo em dar educação e condições para que o povo brasileiro resolva os problemas do país.
Você pega qualquer político hoje, no executivo e no legislativo, e eles nem querem saber disso. Estão muito
ocupados com seus interesses pessoais. Nem pensam em estimular, pela educação, o conhecimento do povo
sobre sua própria terra. No Pará, não tínhamos uma versão contemporânea da História de Pará, eu tive de
fazê-la por meus próprios meios. Em quase todos os estados brasileiros, isto não existe. O brasileiro está sem
noção da própria história, e não tem a menor idéia da nossa geografia.
E os ecologiques se aproveitam para dizer que estamos destruindo nossas riquezas por ignorância...
Tudo mentira! O Pará é prova de que o brasileiro não destrói, preserva. No que toca à responsabilidade do
povo, é o que temos melhor e mais bem aproveitado das riquezas naturais da Amazônia. Sabem fazer e como
fazer. Para te dizer a verdade, a única solução possível para o Brasil começa pela reforma agrária. Acho que
fui o único deputado que propôs uma lei para uma reforma agrária de verdade, mas a nossa Assembléia sequer
quis discuti-la, mandaram arquivar; e depois, mandaram também para a polícia...

E o seu lado artista? A militância pela arte pode ser mais eficaz hoje do que pela política?

Eu vou te dar alguns dos meus livros, um deles com o prefácio de Darcy Ribeiro, que é inclusive o que eu
mais gosto. Mas veja como são as coisas neste país. A Academia de Letras do Pará resolveu que eu deveria ir
para a Academia Brasileira de Letras. Eu sabia que isto jamais aconteceria, mas aceitei para ver no que daria.
Cumpri o ritual, visitei os acadêmicos, levei uma coleção de todas as minhas obras para cada um, e depois
compareci numa sessão, onde houve uma conferência sobre a origem da Academia. Ora, os paraenses José
Veríssimo e Inglês de Souza estão entre os principais fundadores da Academia. Foram até redatores do
estatuto que ainda rege a instituição. Pois bem, falaram mais de uma hora sobre as "origens" da Academia, na
minha presença, e sequer tocaram no nome deles. Era um recado para mim, ou seja, você está perdido
(risos)... E a Nélida Pinon, que é minha amiga, me viu lá e disse: mas Benedicto, você fez tudo errado (mais
risos).... E tinham alguns deles que eu conhecia pessoalmente, mas quando eu me dirigia a eles, falavam
comigo, como se nunca tivessem me visto na vida! Isto foi o que mais me impressionou...

Porque livros como os seus, e outros importantes para se conhecer o Brasil, ficam restritos à língua
portuguesa? Não há interesse lá fora?


Claro que há. Maria de todos os Rios foi o meu último livro publicado na Holanda. Agora mesmo estudiosos
alemães estão fazendo uma leitura profunda da minha obra, e tenho recebido gente de vários países com o
mesmo interesse. O que não há é interesse dos nossos governos, nem das elites mundiais, em se propagar a
nossa realidade. Somos um tesouro que querem esconder do mundo.

Como você conheceu a obra do Capra?

Foi através da minha filha Wanda. Ela me mostrou o primeiro livro que li dele, O Tao da Física, que me
encantou. E quando ele publicou A Teia da Vida é como se ele o tivesse escrito para a Amazônia. Não fala da
Amazônia, mas suas teorias se encaixam perfeitamente como soluções para a Amazônia. É uma intuição
formidável para quem nos conhece pouco, e não conhece a Amazônia. Seria importante para nós se ele viesse
à Amazônia. Eu até penso em conversar com o Governador para trazê-lo. Poderíamos realizar lá o debate que
você propôs com o Instituto do Sol.

Você acha que vai chegar o dia em que eles vão querer nos invadir e tomar a Amazônia?

Entre as formas como as invasões são feitas hoje, a econômica está muito adiantada. A questão da água é
preocupante. Não só temos a maior bacia hidrográfica do mundo, como temos vastos aqüíferos inexplorados.
E tem por aí doido para tudo. Não se lembra daquele que fez o projeto do lago amazônico? (risos)
O Oswald de Andrade conta que o Pará começou quando o rei de Portugal, chegando ao Palácio, notou
uns mendigos na entrada e perguntou ao seu conselheiro quem eram aqueles homens. O conselheiro lhe
disse: - são tão nobres quanto V. M.; acabam de voltar da guerra, onde defenderam Portugal e
perderam quase tudo que tinham. O rei na mesma hora retrucou: - dá-lhes o Amazonas! Assim feito,
vieram para o Pará. Ou seja, era possível naquela época "dar" a Amazônia, agora podem tomá-la.
O Pará era, antes, com o Maranhão, uma só província. Foi o Marquês de Pombal que dividiu e criou a capital,
em Belém. Historicamente, a colonização do Pará começa em 1616, com os jesuítas. Depois que Pombal
resolveu fazer o seu estadozinho próprio, que era um estadão, ele expulsou os jesuítas. O Pará chegou a ser o
quinto estado do Brasil economicamente, na época da borracha...
E depois de 64, o Pará foi muito prejudicado?
Profundamente. A começar pela educação, foram dois grandes desastres. Adaptaram uma legislação norteamericana
para a educação no Pará, chegaram até a importar métodos de ensino! Liquidaram com a
Universidade Federal do Pará, dividiram as turmas, demitiram professores, aquela coisa. E o segundo foi
quando o PT tomou conta... O PT, não têm nenhuma política para a educação! O atual governo estadual, neste
ponto é melhor. Temos a Secretária Rosa Cunha, da Educação, que quer introduzir a educação ecológica nas
escolas estaduais, a começar pelos professores. Uma educação ecológica dentro da nossa visão, da visão do
Capra, do homem integrado na natureza, o que para mim é fundamental.
A meu ver, a única política séria para a educação no Brasil, depois da ditadura, foi a do Brizola e Darcy
Ribeiro, com os CIEPs...
É a pura verdade. E foi destruída pela Rede Globo, com o apoio do PT.
A Rede Globo tem muito poder no Pará?
Muito! São os donos da TV Liberal, de uma TV a cabo, de rádios e dois jornais diários. O que sobra é do
Jader Barbalho, mas ambos sustentam uma briga política e comercial.
O que, na sua opinião, o Brasil precisa saber da Amazônia, em primeiro lugar?
A meu ver, o mais importante seria o Brasil se concientizar que, na Amazônia, somos uma civilização fluvial.
E isto nos torna uma região diferente. As rodovias lá ligam rios, saem do nada e vão para o nada. Todo o
potencial fluvial permanece inexplorado, sequer temos linhas fluviais regulares. Getúlio foi o único estadista
que teve visão para a Amazônia. Ele criou o Banco da Amazônia, a Sudam, estatizou toda a infra-estrutura, os
serviços públicos, e comprou uma frota inteira de navios na Holanda para suprir os ramais fluviais. Eram
transatlânticos que ficavam em Manaus, e faziam a linha Belém-Manaus, e para outros portos do nordeste e
do sul. E também navios menores que atendiam os ramais secundários. Tudo isso acabou, o que representou
enorme atraso para os estados amazônicos, com prejuízos incalculáveis. Então, se o Brasil quiser entender a
Amazônia, tem de começar, por entender que somos uma civilização fluvial. Sem entender isto, não prospera
nada que se faça pela Amazônia. Todas as cidades amazônicas estão na beira dos rios. Todas as pessoas
moram perto dos rios, vivem dos rios, sobrevivem dos rios. Olhe o mapa hidrográfico do Pará e verá que é um
emaranhado de rios, sem falar nos igarapés. Belém era cheia de igarapés. Chegaram a planejar torná-la uma
Veneza brasileira, o que seria, além de belíssimo, excelente para a cidade. Mas vieram os rodoviários,
aterraram tudo, encanaram, e aquelas coisas todas (risos) que hoje são grandes problemas. Poderíamos estar
andando de barco em Belém. E hoje nem a ligação óbvia por via fluvial para Icoracy e Mosqueiro, temos
mais. Querem fazer do Pará um estado rodoviário, é um absurdo! Antes fosse transporte ferroviário, mas a
única estrada de ferro que tínhamos, acabaram com ela. O que nos resta é o transporte aéreo, e caro. A Panair
do Brasil começou lá, com os hidroaviões, pois tinham campos de pouso naturais nos rios. Não temos mais
hidroaviões, viraram peças de museu. Se você não tiver a visão de que o homem é parte da natureza, que a
natureza é “a teia da vida” que Capra está desvendando, e que somos uma civilização fluvial, de hidrovias, um
estado trançado de rios e igarapés, como você entenderá o Pará, a Amazônia? Nunca vai entender! É por não
entendermos a Amazônia que a estamos entregando à exploração vil pelos estrangeiros. O ferro de Carajás, o
alumínio, tudo para os estrangeiros.
Então estamos perdendo mesmo a Amazônia?
Infelizmente, estamos. Mas eu ainda acredito no nosso povo. No passado, foram os mestiços que fizeram a
Cabanagem. Eu digo que a Cabanagem foi a única revolução do mundo em que o povo depôs o poder e
assumiu de fato o poder. E isto aconteceu no Pará, em 1830. Veio a repressão, e matou mais de quarenta mil
pessoas. Tivemos em Eduardo Angelim o grande herói revolucionário. Ele liderou uma verdadeira revolução
brasileira, e eu digo revolução no sentido inclusive marxista - era o povo que derrubava o governo alienígena,
imperialista, gente vindo de fora para governá-lo. Um povo que queria e sabia como assumir e conduzir o
poder em sua própria terra.

A Revolução Caraíba? Ou um precursor de Solano Lopes no Brasil?

Não, não era uma revolução de um ditador. Era o povo conquistando o poder. Mas o pior é que os próprios
paraenses não sabem nada disso. Eu estudei no Colégio Marista, no Pará, na década de 40. Alguns professores
eram franceses, e eu saí de lá sem saber nada sobre a Cabanagem, sobre o Pará e o Brasil. Mas sabendo tudo
sobre a França e a revolução francesa!
E hoje nem isso saem sabendo....
É uma tristeza.


(Esta entrevista foi realizada em 12/01/2005. Antes de ser publicada, Benedicto pediu para incluir o seu
protesto e a sua indignação contra o assassinato violento de sua amiga e companheira de lutas, Irmã Dorothy
Stang, frisando que "ela foi assassinada a 700 km de Belém, e por pessoas que não são do Pará".
)

Algumas obras de Benedicto Monteiro publicadas:
Verde vagomundo, romance, 1º vol. da tetralogia, 1ª ed. Ebrasa, Brasília, 1972 (hoje, na 5ª ed. pela Cejup,
Belém)
O Minossauro, romance, 2º vol. da tetralogia, 1ª ed. Novacultura, Rio, 1975 (hoje na 4ª ed. pela Cejup,
Belém)
A terceira margem, romance, 3º vol. da tetralogia, 1ª ed. Marco Zero, Rio, 1983 (hoje na 4ª ed. pela Cejup,
Belém)
O carro dos milagres, contos, 1ª ed. Novacultura, Rio, 1983 (hoje na 11ª ed. pela Cejup, Belém)
Aquele um, romance, 4º vol. da tetralogia, 1ª ed. Marco Zero/PLG, Rio, 1985 (hoje na 4ª ed. pela Cejup,
Belém)
O cancioneiro do Dalcídio, poesia, 1ª ed., Falângola, Belém, 1985.
Transtempo, romance autobiográfico, 1ª ed. Cejup, Belém, 1993.
Maria de todos os rios, romance, 1ª ed. Cejup, Belém, 1995.
Como se faz um guerrilheiro, contos, 1ª ed. Cejup, Belém, 1995.
Discurso sobre a corda, poesia, 1ª ed. Cejup, Belém, 1996.
A poesia do texto, poesia, 1ª ed. Cejup, Belém, 1999.
A terceira dimensão da mulher, romance, 1ª ed. Cabanagem, Belém, 2002.
Ecologia e Amazônia: idéias sobre a alfabetização ecológica, 1ª ed. Sec. Executiva de Ciência, Tecnologia e
Meio Ambiente, Belém, 2004.
O autor tem também publicados a História do Pará (em 15 fascículos do jornal O Liberal, depois reunidos
em livro), obras de ensaística, obras de literatura infanto-juvenil, coleções de obras didáticas, discos e cds
musicais, e é colunista do jornal O Liberal, de Belém do Pará. Está em preparo o lançamento de seu último
romance Belém vista por Miguel
(informações detalhadas no site: www.verdevagomundo.com.br).


Mario Drumond é jornalista
obs. as frases grifadas são algumas sugestões para os destaques, se vierem a ser feitos.

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