terça-feira, 16 de novembro de 2010

MEMÓRIA E MODERNIDADE EM BENEDICTO MONTEIRO E MILTON HATOUMTÂNIA MARIA PANTÓJA PEREIRA Universidade Federal do Pará (UFPA)

Abstract
Modernity presents two features: memory and
degradatin which are constant in differnt kinds of
literature including the Latino-american one. In the
latter, history and apace mix togheter to consolidate
speceficities. This is what we have abserved in two
brazilian novels with na amazonian scenary through
the present work.


Palavras–chave: modernidade; degradação; memória.


È difícil falar de modernidade sem considerarmos
dois potenciais traços que marcam esse período:


a degradação e a memória. Em termos de América
Latina, esses dois traços mediam uma relação entre
universo e produção cuja perspectiva é a construção
de uma proposta identitária deflagradas a partir da
década de 50 e que encontrou ecos profundos durante
os anos do romance do “boom” em que o real maravilhoso,
diria Jacques Joset, torna-se a tradução mais
próxima de uma realidade efetivamente maravilhosa.

Nesse universo, a memória é construída dentro
de um processo de recuperação da cultura autóctone,
povoada de traços míticos e uma alusão profunda
à paisagem e ‘a história.

Por outro lado, a raiz semântica da palavra
degradação carrega uma idéia de tempo “lento e contínuo”
segundo Walter Moser (apud Miranda;
1999:37). Vejamos: na exposição feita por este autor,
a partir do verbo latino cadere (cair), combinado com
o prefixo de-, temos em francês décheance (degradação),
décadence (decadência) e até déchet (dejetos);
em inglês, declay. O mesmo trabalho pode ser feito
em alemão. Em sua teoria da degradação em As Origens
do Barroco Alemão, Walter Benjamim utilizou,
por exemplo, os termos Verfall (degradação) e
Verganglichkeit (decrepitude).

Em todo esse conjunto semântico é perceptível
a vibração de um determinado traço de tempo histórico:
aquele em que fica patente a perplexidade do
ser diante de um momento cuja herança de períodos
ou eras a anteriores parece estar envolvida por uma
atmosfera residual. Essa visão pessimista da moder-nidade transformou-se em subsídio crítico.

Para
Walter Benjamim a história é revestida de um processo
de decadência irresistível em que o papel da
degradação é , através das imagens da ruína, constar
como alegoria da condição do ser histórico na modernidade.
Segundo ele isto seria plenamente observável
na produção européia.

Analisando dois ficcionistas brasileiros nascidos
na Amazônia: o paraense Benedicto Monteiro
com o romance A Terceira Margem (1983) e o
amazonense Miltom Hatoum com Relato de um certo
Oriente (1989), aqui vamos observar essa ocorrência
da degradação e da memória como traços incondicionais
da modernidade, tomando por rumo uma
profunda relação entre tempo e espaço, verificável
na produção romanesca latino-americana.

No caso desses dois romancistas, a degradação,
enquanto traço estilístico, desdobra-se em outros
elementos essenciais que não apenas à idéia de
tempo consumido, provocador de uma dolorosa nostalgia.
A esse tempo continuamente em de-composição
mescla-se um espaço difuso, garantido perla construção
de imagens que não deixam escapar aspectos
geo-históricos. Toda essa configuração, evocando a
memória, ultrapassa os limites do presente. Esse
envolvimento do espaço é construído, tanto em Relato
de um Certo Oriente quanto em A Terceira Margem,
via um complexo trabalho de articulação de
narradores, todos em primeira pessoa que ao estabelecer
pontos de contato entre um relato e outro, oferecem
ao leitor um quadro pintado não por mãos, mas
por vozes que retornam ou avançam no tempo, tendo
como pano de fundo o espaço funcionando como elemento
essencial para as ações que se desenham.

O foco espacial em Relato de um Certo Oriente,
é Manaus. Constituída pelo olhar espectador de
diversos narradores, a cidade é colhida como se fluísse
de um álbum de recordações. Contudo, é muito
mais que um foco espacial. Manaus é o topos onde o
tempo perde seu fio linear e se interpenetra numa
confusão de rememorações em que a própria história
da cidade se confunde com a história da imigração
libanesa na região amazônica.

Nessa Manaus eternamente úmida as imagens
da degradação oscilam entre o caráter de uma náusea
em relação ao lugar ou uma revelação epifânica.

Quando um narrador imprime em seu relato um certo
caráter de pessimismo em relação ao espaço, este não
chega a ser hostil, mas também não contempla a cidade
como um topos de libertação. Quando, por exemplo,
um dos narradores descreve sua chegada à Amazônia,
emigrado do Líbano, as impressões plásticas
que acompanham esse primeiro contato deixam claro
a sensação de desterro que o consome:
“A viagem foi longa: mais de três mil milhas
navegadas durante várias semanas; em
certas noites, eu e os poucos aventureiros q
eu me acompanhavam pareciam os únicos sobreviventes
de uma catástrofe” (p.72)
Sensação amenizada pelo espetáculo de cores
que, no entanto, logo em seguida se oferece aos
seus olhos:

“ Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza,
aqui, além de misteriosa é quase sempre
pontual. Às cinco e meia tudo ainda era
silencioso naquele mundo invisível; em poucos
minutos a claridade surgiu como uma súbita
revelação, mesclada aos diversos matizes
do vermelho, tal um tapete estendido no
horizonte, de onde brotavam miríades de asas
faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante
esse breve intervalo de tênue luminosidade,
vi uma árvore imensa expandir suas raízes e
copa na direção das nuvens e das águas, e
me senti reconfortado ao imaginar ser aquela
a árvore do sétimo céu.
Ao meu redor todos ainda dormiam, de
modo que presenciei sozinho aquele amanhecer,
que nunca mais se repetiria com a mesma
intensidade. Compreendi com o passar do
tempo, que a visão de uma paisagem singular
pode alterar o destino de um homem e
toná-lo menos estranho à terra em que ele pisa
pela primeira vez”
(p.73)

A imagem da degradação está na maneira
como o lugar é deflagrado dentro da narrativa: situado
como um lugar desconhecido, ora inóspito, ora
agradável e edificado entre um tempo amado – o tempo
da terra natal, e um tempo nostálgico – o tempo
da nova terra. A chegada a esse lugar “ que seria exagero
chamar de cidade”
(p.71) segundo este mesmo
narrador, é, na esfera do não-dito, o marco de um
ciclo que se inicia e que deixa nele a marca profunda
de um tempo que se encerra.
Situando definitivamente o relato entre o
Oriente e a Amazônia, numa zona em que as fronteiras
culturais flutuam entre as imagens da antiga terra
e da terra nova, quando vista em seus aspectos mais
coloridos, cada recanto de Manaus parece suavizar a
perda do paraíso perdido de quem nela busca proteção
e abrigo ou é o mote para uma referência à casa natal
de um dos narradores. Casa que pode ser a própria
Manaus ou a Trípoli distante.
Filtradas pelo tempo, as cenas da cidade parecem
ser a transposição dos sentimentos mais profundos
refluindo da voz de cada um dos seus narradores
e as imagens são cuidadosamente selecionadas para
encerrar um drama: o retorno à casa matriarcal desfeita,
possível apenas na memória de quem a viveu e
ao leitor que dela toma parte via contemplação de
quem a relata. A narrativa sucumbe à idéia de um
tempo-espaço residual marcado por imagens fortes e
recorrentes: a cidade em suas ruas, becos, pontes,
portos; a casa e, enfim, o rio que emergem de memórias
fragmentadas, para que seus personagens sintam
a nostalgia de um tempo e de um espaço de onde já
foram desalojados em corpo, mas onde se sentem
definitivamente sepultados em alma:
“A conversa com os animais, os sonhos
de Emilie, o passeio ao mercado na hora que
o sol revela tantos matizes do verde e ilumina
a lâmina escura do rio. Na fala da mulher
que permanecera diante de mim, havia uma
parte da vida passada, um inferno de lembranças,
um mundo paralisado à espera de
movimento. Sim, com certeza Emilie já lhe
havia contado algo a respeito. A mulher sabia
que éramos irmãos e que Emilie nos havia
adotado. Talvez já soubesse da existência
dos quatro filhos de Emilie: Hakime Samara
Délia, que passaram a ser nossos tios, e os
outros dois, inomináveis, filhos ferozes de
Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo
e na língua” (p.11)


Tendo o caboclo Miguel dos Santos Prazeres
como um dos dois grandes narradores deste romance
(o outro é um geógrafo cujo nome não é revelado),
em A Terceira Margem, temos a idéia de uma dupla
degradação mesclada na ocorrência simultânea de
dois tempos: um tempo histórico, uma vez que a ação
se passa durante a ditadura militar e um tempo mítico,
que ganha força com o caráter de narrativa de fundação
que conduz a obra a uma arquitetura épica.
Do tempo histórico não se pode minimizar os
efeitos da degradação política, ideológica e ética que
movimentou o período e estão muito bem marcadas
no romance através de uma profusão de textos de crítica,
filosofia, história, sociologia, biologia, etc., formando
uma espécie de mosaico intertextual que situa
e garante também a memória documental das leituras
intelectuais dentro e sob o período em que a narrativa
se desenvolve. Esse mesmo período envolve
Miguel a ponto de torná-lo um fugitivo dentro da floresta,
perseguido de porto em porto por uma força
policial do Exército. Contudo, longe de sentir-se exilado
Miguel conta sua própria saga: o ofício de
fazedor de filhos. De fato, ele torna-se o genitor de
sete filhos, cujas sete mães são oriundas de sete etnias:
cabocla, japonesa, turca, negra, nordestina, portuguesa
e índia.
Esses sete filhos de Miguel, alegorias da proliferação
cultural e étnica na Amazônia e que por
substância desvelam uma identidade, são parte de um
relato cujo fio maior é um tempo mítico, ilustrado na
viagem épica que Miguel faz pelos rios da floresta
amazônica, não apenas para fugir da ditadura mas
também para contar as proezas que alimentam sua
saga viril. Por força desse caráter de narrativa fundante,
o narrador sulca o relato da nostalgia de um
passado que parece remoto, primitivo, anterior a qualquer
tempo, em que o sentimento de liberdade é mais
que um sintoma do tempo histórico em que o país
está mergulhado, é a própria alegoria desse tempo
mítico, evidente quando Miguel fala de seu último
filho, cuja mãe é uma índia:

“Sentia que estava devolvendo o meu sangue
e que o filho nascido daqueles eitos nunca
mais ia ser visto. Era como se eu tivesse
plantado uma árvore na floresta virgem, ou
deixado escapar uma caça na clareira ou libertado
um pássaro num céu bem alto ou derramado
nágua um baita cardume de peixes
vivos. Assim eu tinha entregue esse meu filho
à natureza. Só que pra ele, eu queria uma vida
ainda mais livre. Esse – eu lhe digo – esse
meu filho com essa índia é pura invenção do
meu ofício. Forças do sangue borbulham pelos
olhos e pelas partes. Esse ofício de fazedor
de filhos me indica: tenho certeza que deixei
esse filho grelado naquela indiazinha. Mas
também é só isso a que meu pensamento se
atreve. Eu não quero nem lhe dizer como imagino
esse meu filho índio. Dele eu não sei nem
o nome. Tenho até medo de prender o seu destino
amarrado ao meu pensamento”
(p. 184)


A cidade em A Terceira Margem é construída
como um porto, um lugar de errância. Neste romance
o topos que está realmente impregnado da imagem
da Casa é a floresta e o rio. Sugerindo uma cena
antropofágica, no momento final do romance Miguel
parece mesclar-se a esses dois elementos, num ritual
epifânico. A cena é digna da maravilha que impregna
esse universo:

“Só a minha canoa flutuava. Flutuava com
a cor, com o som, acho até como flutua o pensamento.
Um vento frio soprava como lâmina.
Mas não cortava. Não cortava nem o céu,
nem a noite e nem a água. Procurei, ainda,
meu barco como se fosse a minha sombra.
Como último socorro e último alento. Mas a
minha vida paresque não chagava mais até
lá de onde paresque eu tinha viajado. Quis
me garrar numa palavra: Deus, gritei – D-EU-
S. Eu mesmo, o senhor pensa, não escutei
mais nada. Quis me agarrar numa linha qualquer
qualquer,
da água, da noite, do céu, do horizonte
e até do pensamento. Tudo era espaço e tempo
vago. Verde vagomundo. Foi aí que eu me
perdi na pura claridade. Era paresque claridade
do verde, da água, da noite, e do silêncio.
Pensei que era a morte, que eu estava
morto. Pensei que estava bem no fundo. Mas
nesse mesmo instante, nesse justo e exato
momento, foi que a água e o céu se abriram e
surgiu uma praia branca. Muito branca. Todos
os verdes e todas as cores se resumiram
naquela praia. E não tinha princípio nem fim:
era uma distância. Era paresque também uma
margem... mas uma outra margem” (
p. 189)



Essa idéia de um espaço autóctone , “um verdadeiro
cosmos” aquele “canto do mundo” a que se
reporta Gaston Bachelard (1993:24), telúrico a ponto
de metabolizar de alguma forma o ser que o habita,
parece guardar em Relato de um Certo Oriente e

A Terceira Margem um parentesco agudo, por exemplo,
com o Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia
Marquez. Assim, a degradação confirma nesses romances
a vocação moderna de confronto com o passado,
cuja conseqüência é uma espécie de ressentimento
nostálgico, um desejo de recuperação de algo bom
e prazeroso que, no entanto, se mostra irremediavelmente
perdido, embora plenamente atuais nas imagens
do espaço em que existiram: assim é a casa
matriarcal em Relato de um Certo Oriente, assim é
uma Amazônia livre do saque capitalista e da ditadura
em A Terceira Margem, assim é a Macondo de
Cem Anos de Solidão, antes daquele vento que a consumiu
complemente. No entanto, a nostalgia que em
outros contextos assume a configuração de falta de
um tempo considerado perdido, aqui se desenha a
partir de um outro ethos: o passado se registra
infiltrado por uma história impossível de ser negada,
mas cuja nostalgia parece se fazer presente apenas
quando relacionada a uma comunidade em seus momentos
iniciais.

Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
HATOUM, Milton. Relato de um Certo Oriente. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
JOSET, Jacque. A Literatura Hispano-Americana.
São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MONTEIRO, Benedicto. A Terceira Margem. Belém:
CEJUP, 1991.
MOSER, Walter. Spatzeit. In: Miranda, Wander Melo
(Org.). Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte

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