sábado, 20 de novembro de 2010

O PEIXE - CONTO DE BENEDICTO MONTEIRO



Varado da mata, areado do tempo, cansado do corpo, saí no limpozinho do terreiro, já meio zuruó. O sol tinia, sem sombra e sem vento. Batia em cheio. Nem tive tempo de limpar a vista com tamanho luzimento.


A Lambisgóia, que era uma cachorrinha inxirida, já estava por dentro da casa, dando alarme. O latido dela era como quem dizia: Bem que farejei, farejei, acuei, acuei a cotia que estava na comidia da roça... Mas na horinha do tiro mata e queda, o pau de fogo falhou. E aí, foi zapt, zapt, zapt, - a cotia arisca perna-pra-que-te-quer.



A mulher só deu uma espiada pela ilharga do japá e viu logo que eu não tinha trazido nada. Acho que ela nem precisava olhar, porque já conhecia de longe o resultado da caçada. Só pelo latido da cachorra Lambisgóia. Nessas horas, a modo que em vez de latir, ela gemia, arreliada que só. O resto, eu mesmo, chegando assim desajeitado, contava, sem falar. Bastava ela ver que eu vinha segurando aquela espingarda velha, com nojo. O traste tinha falhado mais uma vez: Batido catolé.



Aproveitei o espaço que restava entre a mata e a casa, para respirar bem fundo, enquanto os meninos não chegavam. Pelo rápido olhar da mulher, eu pude logo maginar que o tamanho da fome tinha crescido em casa por demais. Se os pirralhos chegassem para ver o que tinha trazido da caça, a modo que eu era capaz de recuar novamente para dentro do mato. Mas a minha própria fome já era meio desconforme. Eu me lembrava que eu só tinha bebido uma simples xicrinha de café. Ouvi o barulho das crianças meio por perto, numa capoeira rala-rala de manhurana e mata-pasto. Daqui pra de que a pouco, pensei, elas vão chegar perguntando pelo de comer. Lástima de lástima! Quem me encontrou logo na porta da cozinha, foi a mulher. - Como é, homem, nada?
- Nada, mulher, nem inambu. Esta porcaria de arma falhou no primeiro tiro. Agora é preciso consertar.
- E só na cidade....
- É, mas as crianças já devem de estar com muita fome.
- Então vai ver se arranjas um peixe no lago.
- Com esse tempo, tu bem sabes que é impossível.
- Tenta, homem de Deus! Pode ser que apareça qualquer coisa. Até traíra serve, contanto que engane a fome dos pirralhos.



Chamei a cachorrinha, com medo que ela fosse com aquele latido choroso, enredar para criançada que eu tinha chegado de mãos-abanando. Tinha passado a manhã inteira dentro da mata, mas o olhar da mulher, não me dava sossego nem de passar no pote para tirar um gole d' água. Peguei meus utensílios de pesca e saí no rumo do lago.



De cima da ribanceira eu vi logo o tamanho do bruto: Agora sim era um lago! Mas antes já tinha sido um campo. Campo e pasto. Varja. Varja alta. Varja alta e varja baixa entremeada de poços no verão. O sol. Tinindo e tremendo. Vasto-vasto. Lama e charco. Campinarana baita! Tijuco e chavascal. Mas pelo meio, no verão, passava um igarapé. Agora, nem sinal! Agora nem sinal de correnteza indicava o que havia por baixo. As ilhas é que faziam a mata se unir por longe uma linha do horizonte. Nele é que sobravam os sombreados igapós. Agora era a água. Tudo água. Água por baixo e por cima de tudo. Lago-rio-campo alagado. Lago parado, lago manso, lago-lago. Água que se estendia pra-nunca-mais ...



A canoa estava meia escondida do sol, no meio do capim. A cachorrinha parou e deitou na ribanceira, pôs o focinho entre as patas e me olhou desconsolada: Latiu dizendo que nada entendia de pescaria. Deu uns ganidos sem jeito e tornou a cobrir o focinho com as patas depois de escavar, escavar o chão. Ali era o limite do inxirimento. Pra beira d'água, ela só ia arrastada, quando as crianças cismavam de dar banho com sabugo de milho e sabão de cacau.



O lago agora era muito maior do que eu pensava. Desci sem muita fé de conseguir qualquer coisa, porque conforme tinha dito a mulher, o tempo não estava favorável. Sabia muito bem que com aquele tempo e naquela hora, era impossível pescar. Tinha aprendido isso de meu avô, de meu pai e das minhas vivências por todos esses lagos. Mas o diacho é que eu não podia ficar. Não, não podia ficar em casa e suportar o olhar espichado da mulher. Não. Não podia mais nem ouvir o choro sentido das crianças. Se elas chegassem de repente... A fome, a fome se encarregava de marcar o cerco agoniado que amarrava os cinco filhos no cós da minha calça.



Eu levava tudo pra pescar,: espinhel, caniço, arpão e zagaia. Só não levava tarrafa, porque era inverno e ela estava toda esburacada da safra do verão. Enquanto eu ainda estava tirando água da canoa, ouvi os gritos das crianças. Pus as mãos em concha na boca e gritei:



- Mulher, não bate nos pirralhos.



- Então vem dar comida pra eles... - ela gritou.



Como resposta, empurrei a canoa pró meio do lago. Gesto inútil, eu acabava de saber. Onde acharia peixe naquela imensidão? Naquela hora, com aquele sol e agora com aquele vento. Só mesmo muito milagre...



Jesus Cristo tinha feito o milagre da pesca. Mas tinha sido para os seus discípulos, conforme falava frei Daniel em tempo de sermão... Mas já fazia tanto tempo...



Remava ainda no meio do capim que beirava o lago: Canarana, premembeca, murerú, mururé, malícia, sororoca, e arroz-brabo, que ia espaçando, espaçando, espaçando, até encontrar a fundura das águas onde não aparecia mais capim. Maginava a modo de achar peixe fora de hora. Podia até atravessar o lago e esperar embaixo das árvores no meio do igapó. Mas essa somenas travessia levaria horas. Por via das dúvidas, já tinha deixado armado o espinhei. Finquei duas varas no meio do pasto e estiquei a linha dentro d' água. Deixei os anzóis pendurados pro-que-desse-e-viesse da parte dos rios. Abarcava com a vista quase todo o imenso lago. Quanta pescaria já não tinha feito ali. Ainda me lembrava da primeira vez que meu pai consentiu que eu sozinho jogasse a tarrafa: "Olha, rapaz, cuidado com o peso da bicha, não vai cair com ela embolado dentro d'água, j'ouviu?”



Mas naquele tempo, eu não me preocupava de ser arrastado até que fosse pró fundo do maior perau... Já tinha mordido a chumbada nos dentes, arrumado as dobras das malhas no braço direito, e dava o balanço do corpo pra descrever um grande e perfeito círculo na água prateada. Todo o lago era meu naquela madrugada: O cardume de peixe fervilhando na proa, o vento dobrando a canarana de leve, e o clarão boiando de dentro d'água naquela manhã. Pois ainda era noite nas matas ao longe e já era manhã nas águas que luziam e tremeluziam sacudidas pelo vento. O pai e eu. A tarrafa, o cardume, a canoa, a água e o céu. O que importava, era que a tarrafa caísse em cima do cardume em círculo perfeito. Depois, depois tudo podia acontecer, porque eu só concentrava toda a força, todo o vigor, toda a alegria, todo o amor da minha maior dor naquele simples gesto.



Mas agora eu estava só. Completamente só. Não tinha o pai, no leme da canoa, nem a madrugada, nem a mocidade nem o amor... Nem a chumbada ferrada nos meus dentes. Nem a tarrafa dobrada nos meus braços. E nem sequer uma bubulha de peixe boiando pela minha frente. O meu ouvido não escutava o ziziar suave do vento da manhã, nem o cochicho confuso da viração no meio do capim. Em vez disso, o vento duro e quente, trazia ainda o triste som do choro das crianças. Choro triste morrendo muito longe, que – a modo - me acordava do meio daqueles remorsos pensamentos. Tinha pensado nem sei quanto, em pé no meio da canoa. E a canoa meia-parada, mexida somente pelo vento.



Peguei novamente o remo e tomei distância no rumo do meio do lago. Um homem no meio de imenso lago, quando sabe que as matas ao longe não formam nem a beira, sente tristeza de olhar pra linha do horizonte. E ainda por cima, com fome, é coisa muito fácil de desesperar.



Eu já estava disposto a invocar o milagre divino. Havera de começar com São Pedro, que era padroeiro da pesca. Não exigia que aparecesse uma desconforme piracema, porque era inverno e a minha tarrafa tinha ficado esburacada em casa por cima do jirau. Os jaraquis, os aracus, os curimatans, pacus, carás, mapiris e maparás, que desciam em cardumes, deviam de estar nas suas ovas pelos buracos dos matupás. Mas bem que São Pedro podia mandar de lambuja, um tambaqui, uma pirapitinga ou mesmo um bom tucunaré. Se não quisesse mandar pró bico do meu arpão, bem que podia até mandar escolher um anzol do meu espinhei. Apesar da hora, do vento, que já tinha encrespado, e do sol que já estava muito mais vidrado, São Pedro bem que podia encaminhar um desses peixes que comiam nos pastos, para banda da linha esticada por baixo do capim. Eu bem que olhava de vez em quando as duas varas: Se mexessem, era sinal de peixe fisgado, panela cheia, brando olhar da mulher, alegria das crianças e sossego e paz pra mim até na outra hora de comer. Mas apesar do espinhel esticado no pasto, eu trazia armada no ombro a haste do arpão. A qualquer momento um peixe podia boiar. Boiar ali mesmo na minha frente, seria um grande milagre. Mas eu só contava mesmo naquela hora com a ajuda do sobrenatural. 



Rezei a Santo António que era padroeiro da nossa cidade. Finalmente, Santo António tinha o dever de proteger num raio de muitos e muitos quilómetros todos os seus fiéis. O povo falava que esse mesmo santo que era adorado na matriz, tinha se deslocado milagrosamente da beira de um lago bem longe como esse à procura da terra firme de beira de rio. Ele mesmo como Santo sabia o quanto era triste e difícil morar isolado na margem desses lagos, que de repente, ao sabor do Amazonas, viram campos, praias e igapós.



O lago imenso continuava revolto. O vento, mais forte e o sol, mais reverberante. Eu me sentia pequeno e completamente abandonado. Me levantei mais uma vez na canoa e subi na escala das minhas orações: Me agarrei com Nossa Senhora. Nossa Senhora era mãe de Jesus, tinha poderes. Além disso, sabia o que era ter filho chorando com fome... Em pé na canoa, cresci e fortaleci a minha fé. Era a primeira vez que eu fazia um pedido com tanto fervor. Fervor não, angústia, quase desespero. Aí me ajoelhei. Não pra puxar a linha do arpão, ou pra tirar o peixe das malhas da tarrafa. Eu me ajoelhei foi pra rezar. E prostrado, já no meio do lago, no fundo da canoa, implorei o santo milagre da pesca. Não, não queria uma canoa cheia: Bastava um tambaqui. Tentei rezar a Salve-Rainha até "nos mostrai". Quando eu era criança, minha mãe sempre dizia: - Meu filho, reza a Salve-Rainha até "nos mostrai", que tu encontras a caça nas matas e os peixes nos rios, contanto que seja com muita fé. Mas eu nunca tinha experimentado a fé de minha mãe. Aí, me deu de novo aquela cuíra de fé fervente e eu pedi a Deus que me mandasse um peixe. Um peixe que fosse só ao menos pra matar a fome dos pirralhos e aplacar o olhar, o triste e duro olhar da minha mulher. Aí esperei. Longo tempo esperei. O céu, o vento, o sol e a água, estavam todos avessos ao milagre. Foi aí que, depois de sondar o ambiente e sentir aquela ventania quente e exasperante, tive uma esperança que era quase um desespero: Apelei para o Diabo.



- Oh, São Diabo, manda um peixe!



Não só pensei, mas fiquei em pé na canoa e gritei: 



- Oh, São Diabo, manda um peixe!



Quase que escapulo o pelo-amor-de-Deus. Sabia que com o tinhoso não se brinca. E nem se deve falar baixinho conforme se reza aos Santos.



Mal acabei de ouvir o som das minhas próprias palavras, senti que tudo tinha mudado de repente. O vento tinha parado completamente. O sol estava escondido e espalhava uma luz branda e meia morta. A canoa estava totalmente parada e a água luzente e transparente. Senti um terrível calafrio: Todos os meus cabelos se arrepiaram. Na falta de outro jeito, para não cair, me agarrei em guarda na haste do arpão. Sofri a extravagância mais esquisita da minha vida. Fiquei entre o céu e o inferno, entre a crença e a descrença, entre a vida e a morte, entre a minha pessoa e a outra dentro de mim... Fiquei à espera do milagre.



A água estava cada vez mais parada e transparente: Se abria como espelho aos meus olhos, onde eu via o fundo do lago já meio furta-cor. Até onde a vista alcançava, eu via a água verde, água-cinza, água-azul, água-chumbo, água-negra, água-meia-prateada. E as plantas bem no fundo, em mil formas e cores, acenando como braços. Era a beleza do céu ou encanto do inferno?



Morando tanto tempo naquelas bandas, jamais tinha reparado as lindas coisas do fundo daquele lago. Em baixo daquele gigante espelho, descobri então, mil coisas, mil folhas, mil plantas: Capim-à-toa, cipó de lama, folhas de limo, raízes e raízes, tipos de flor, tudo, tudo chamando a gente como mãos e acenando como braços. Era a vida de Deus, ou a morte do Diabo? Encarei a água como um homem que enfrenta o abismo: Pra confirmar o equilíbrio. E vi. Vi, por Deus, que eu vi. Vi surgirem do fundo, bem fundo, do fundo das águas, do meio daquela claridade cristalina, daquela desconforme confusão de cores, umas bolhas que-vinham-que-vinham, que vinham e espocavam como flores. As bolhas que vinham, viravam ondas na superfície. Aí que eu estatelei. Olhei de novo: As plantas se moviam. Atrás das bolhas, como que nascendo da própria água, ou da transformação das cores, surgia um peixe. Um peixe! Um peixe prateado. Meu Deus, que peixe será esse? Pensei: É um tambaqui. Eu juro que é um tambaqui. Mas todo branco? Enorme e desconforme e todo prateado? Meu Deus, meu Deus, que peixe será esse? Assim nadando de prancha mal-a-mal movendo as barbatanas, quase à flor da água espelhando lampejos de prata... Eu então maldei e tive ímpeta vontade: Sacudo o arpão na tua cabeça. Que erre e pegue no espinhaço, eu sei que é tiro e queda e morte certa em cima e no apagar do rastro. E o último arrepio do derradeiro instante, peixe danisco. Fora d'água não serás mais peixe. E sim, bóia, comida das crianças. Será que vale a pena levar pra casa pra matar paresque a fome dos pirralhos? Quem te mandou? Nunca vi tambaqui branco nadando de prancha meio tonteado. Que me conste, não deve ser peixe destas bandas nem vivente terrestre destas paragens. Vieste mandado do Céu ou enviado do Inferno, sadórico emissário?



Espera aí, que acabo já com a tua franca pavulage. Te lasco o arpão em riba desse lombo, que quero ver o estrago, peixe danisco. Tu és cioso ou mal-assombrado? Bem, depois è o fundo da panela caldo grosso, pirão de fubá e pimenta malagueta. Existe a fome das crianças, o olhar duro da mulher e a triste desconfiança, isto eu sei que existe independente de crença. Pimenta e alho, diz'que quebra qualquer encanto. Assim dizem, diz'que. Até de peixe fingindo comida da gente... Não, peixe manhoso, t'esconjuro! Faço pelo sinal-da-cruz três vezes. E te arrenego a cor, perco até o sabor, que a fome é muito mais forte que a fé nestas paragens.



Eu já sentia era o cheiro do peixe na panela, o gosto na boca e a alegria nos olhos das crianças. O peixe nadava quase à flor da água parada e transparente. Nadava ou deslizava. Espalhava lampejos de mil cores.



Arrumei o arpão e marquei bem no meio do lombo. Era bem no meio da cabeça e no fio do espinhaço. Ia arpoar tiro-e-queda no bico de aço. Mas... Uma força de dentro ou de fora de repente relaxou todos os meus músculos e desfez num átimo o mais simples gesto. Aí meu pensamento foi rasgado pelo meio. Parei como a ave que morre voando bem alto. Olhei pró céu e gritei pra o fundo, bem pra o fundo do lago:



- Vai-te, vai-te pró Inferno peixe do Diabo.




2 comentários:

Jorge Ramiro disse...

É uma história muito interessante. Eu gosto de literatura e na internet oferece a possibilidade de que as pessoas podem compartilhar textos na Web como este texto que você compartilhou. Tenho uma fábrica de bebedouro para cachorro, mas eu sou um grande leitor. Ler um livro é melhor do que a TV.

Paulinho Talharim disse...

Que maravilha! Um universo amazonida pronto para o mergulho...amei!